quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Sobre a identidade sexual: algumas reflexões/ponderações





Ao tentarmos versar algumas considerações relativas à identidade sexual, inapelavelmente, somos “coagidos” a ponderamos sobre aquilo que se configura, exata e especificamente, como identidade e sobre a sexualidade, propriamente. Apenas em tom de declaração, comungaremos, aqui, da ideia de que ambas estão superimplicadas e em mútua determinação.

A identidade, enquanto noção e sentimento de si, é uma noção dinâmica que sobrevive em cada um de nós. Em outras palavras, a identidade é um processo contínuo, nunca acabado. Consoante os movimentos da vida assumimos posições identitárias com maior ou menor mobilidade. Ademais, a identidade não é algo que encontremos, ou que tenhamos de uma vez e para sempre. Identidade é uma construção (e reconstrução), um movimento.

“A identidade não é algo que exista a priori e deva ser resgatado. Identidades são construídas em interações sociais, dependem da existência do outro, sendo passíveis de constantes reconstruções e transformações em novas interações. A identidade não está ligada a ser, mas a estar, ou, mais especificamente, a representar. Sendo a identidade uma construção social, e não um dado, herdado biologicamente, ela se dá no âmbito da representação: a identidade representa a forma como os indivíduos se enxergam e enxergam uns aos outros no mundo.” (HALL, 1992, p. 56)

É recente a centralidade que a questão da identidade adquiriu nas ciências sociais. A ideia de que a identidade é socialmente construída foi reconfigurada (não descartada). Nessa ótica, seguindo a argumentação de Hall (1992) pode-se dizer que as identidades não mais (unicamente) se referem a grupos fechados, ou apenas a identidades étnicas. Num mundo instável, numa sociedade de risco (Beck, 2003), numa modernidade líquida (Bauman, 2001) as identidades também se tornam instáveis. Deixam de ser determinadas por grupos específicos e também deixam de ser o foco de estabilidade do mundo social. As identidades tornam-se híbridas e deslocadas de um vínculo local. E isso significa também que são transformadas em uma tarefa individual, em um processo de construção incessante, e não mais de atribuição coletiva que implicava apenas certa conformação às normas sociais.

Por outro lado, outra discussão é acionada através do debate acerca das identidades, a saber, as fronteiras entre a psicologia e a sociologia. O deslocamento da identidade enquanto identificação cultural para construção individual opera um deslocamento nas fronteiras do que é objeto de uma ou outra ciência. Quando o self se torna objeto da sociologia, e quando o debate em torno do indivíduo se torna predominante, tornam-se bastante sutis e permeáveis as fronteiras entre essas duas tradições científicas.

Hall (1992) nos apresenta três concepções de identidade, que foram se modificando, ao longo da história, através das mais variadas transformações sofridas pelos indivíduos. São elas: o sujeito do iluminismo (totalmente centrado, unificado, racional, dotado de um núcleo interior, que permanecia essencialmente o mesmo ao longo da existência do indivíduo); o sujeito sociológico (tinha consciência de que este núcleo interior do sujeito era formado a partir da interação com a sociedade e a cultura); e o sujeito pós-moderno (sua identidade se fragmenta e ele está composto de várias identidades possíveis, assumidas em diferentes momentos e não unificadas ao redor de um “eu” coerente).

Seguindo a esteira da liquidez, da imprevisibilidade e da instabilidade que caracterizam o mundo pós-moderno, a identidade figura como algo também instável, mutável, encontra-se sempre incompleta e em permanente processo de ressignificação, de reelaboração, demonstrando-se, como mencionado, que hodiernamente somos possuidores de inúmeras identidades. Cogita-se que há lugar para distinguir na identidade seu caráter relativo, o caráter absoluto e a capacidade para tolerar flutuações identitárias. Na verdade, nossa identidade tem de ser sempre relativa, uma vez que a sua plasticidade é a melhor maneira de preservar o edifício identitário (Bauman, 2001).

Acompanhada de mitos, tabus, proibições, inverdades e preconceitos, a sexualidade, da qual passaremos a tratar agora, é uma temática passível de muitas discussões. A sexualidade é uma característica (condição) inerente ao ser humano, é tão humana quanto o é a linguagem e se-nos faz presente desde a vida intra-uterina até o final de sua existência, manifestando-se de formas diversas, como bem advertiu a teoria freudiana. Inúmeros fatores biológicos, sociais, políticos e psicológicos influem diretamente na formação e no direcionamento da nossa sexualidade.

Sexualidade é, portanto, um fenômeno composto por elementos de diversas esferas, do biológico ao sociopolítico, do genético ao psicológico. Lidando simultaneamente com tantas variáveis, a sexualidade humana é o resultado e, ao mesmo tempo, a conseqüência direta da personalidade e das relações interpessoais de cada indivíduo.
Um outro ponto de vista a que, apenas à guisa de citação, pretendemos fazer menção é o de Michel Foucault, que concebeu a sexualidade como uma construção social basicamente criada para submeter o corpo individual ao controle coletivo da sociedade. Segundo ele, o conceito de sexualidade não é uma categoria natural, mas uma construção social e como tal só pode existir no contexto social.

Feitas essas duas breves considerações, tentaremos entrelaçar (embora nunca estiveram, em si, “desentrelaçados”) conceitualmente esses dois “aspectos” humanos, a saber, a identidade e a sexualidade. Frente à diversidade de formas de expressão da sexualidade, hodiernamente perceptíveis, o questionamento de modelos fixos e inequívocos do que é ser masculino e do que é ser feminino é inevitável. Tal questionamento parece dar espaço para o reconhecimento de masculinidades e de feminilidades.

O sexo biológico, por assim dizer, não mais responde (sozinho) pela sexualidade do indivíduo. A construção dos gêneros se ancora nos sistemas particulares de valores culturais, a partir de um conjunto de práticas, formas simbólicas, representações, normas e valores sociais, que moldam o corpo humano e suas práticas em noções de masculinidade e feminilidade (Giddens, 1993). Assim como os gêneros se constituem nas relações sociais e culturais, as identidades de gênero também são atribuídas socialmente. Podemos considerar o fenômeno contemporâneo dos transformismos como questionador de uma concepção de gênero, percebendo seu desdobramento numa multiplicidade de identidades.

As identidades sexuais se constituem através das formas como os indivíduos vivem sua sexualidade, com parceiros/as do mesmo sexo, do sexo oposto, de ambos os sexos ou sem parceiros/as. Por outro lado, os sujeitos também se identificam, social e historicamente, como masculinos e femininos e assim constroem suas identidades de gênero. (Louro, 1997). Freud rende-se à constatação de que a identidade sexual é tudo menos um processo simples, e passa a admitir que a “explicação” da homosexualidade não é mais necessária do que a da heterosexualidade (Freud, 1996)
Idéias como as de Rousseau foram basilares para a construção de uma noção da mulher como frágil e submissa ao homem. Para o filósofo, ela não deveria ultrapassar os limites da mediocridade e sim servir e dar prazer ao homem (Rousseau, 2004). Esse ideal de submissão se justificava porque as mulheres deveriam ocupar o “lugar natural” de esposas que devem agradar. A natureza, sendo sábia, argumenta Rousseau, conferiu às mulheres menos força física, mas também maior habilidade em obedecer. “É da ordem da natureza que a mulher obedeça ao homem”. Numa linha tênue entre ser submissa e ao mesmo tempo exercer poder, Rousseau vai propor um modelo que ainda se pode encontrar em vigor:

“O domínio da mulher é um domínio de doçura, de habilidade e de complacência; suas ordens são carícias, suas ameaças são lágrimas. Ela deve reinar no lar como um ministro no Estado, fazendo com que lhe ordenem o que quer fazer. Nesse sentido, é comum que os melhores casamentos sejam aqueles em que a mulher tem maior autoridade; quando, porém, ela despreza a voz do chefe, quando quer usurpar seus direitos e mandar ela própria, de tal desgoverno resulta apenas miséria, escândalo e desonra”. (ROUSSEAU, 2004, p. 244)

Rousseau estava inscrito numa tradição que via as mulheres como “coléricas, vingativas, de vontade e memórias fracas, dissimuladas, vaidosas, de pouca inteligência, avarentas, invejosas, difamadoras, vorazes, inconstantes, mentirosas, beberronas, tagarelas, insaciáveis.” (Nunes, 2000, p. 24) A mulher, na perspectiva rousseauísta, que foi "feita especialmente para agradar ao homem", tem como características inerentes ao seu sexo, a passividade e fragilidade. Esse parêntese serve de efeito comparativo para que percebamos como os papéis sociais do gênero mudam.

Os movimentos emancipatórios feministas mudaram esse cenário, levando, como dito, a uma redistribuição de papéis em todas as estâncias da vida cotidiana e re-demarcando, assim, os papéis sociais de gênero. Aquilo que era típico de um dos gêneros passou a tipificar ambos. Nesse movimento, as identidades de gênero também mudam, embaralham-se. Se os papéis sociais atribuídos a cada gênero são inconstantes, portanto, incertos, não é difícil perceber que a identidade de gênero também é marcada pela inconstância, pela incerteza, pela liquidez, como aponta. Bauman (2001).

A identidade sexual não pode ser confundida com identidade de gênero. Esta é definida por papéis que a sociedade determina ou atribui a cada gênero e, nessa linha de pensamento, abrange todas as expressões do gênero, extrapola aquilo que especificamente reporta-se à preferência sexual. Em outras palavras, o indivíduo pode desempenhar todos os papéis delegados a um gênero e possuir desejos sexuais diversamente norteados.

A identidade sexual também é influenciada pelas categorias de sexualidade presentes na cultura da pessoa e pelas atitudes da pessoa para com aquelas que se ajusta a essas categorias. Tantas categorias culturais da sexualidade quanto às atitudes culturais em relação a elas variam muito entre as sociedades e dentro das sociedades no decorrer do tempo.

Uma série de interrogações feitas por Lago (1999) questiona a posição de alguém que não se enquadre no modelo de heterossexual, enquanto dissonante com a identidade de gênero que lhe foi atribuída socialmente, pelo motivo da escolha de seu objeto amoroso. Isso nos faz refletir o quanto pode ser confuso para um sujeito que não se identifica com a identidade sexual que lhe é cobrada e, por vezes, sente-se desautorizado a se representar como homem ou mulher. Nesse mote, as questões ligadas à sexualidade estão intrinsecamente contidas nas discussões sobre gênero e identidade e as diferentes “estruturas” (classe, raça, gênero, sexualidade, etc.) não podem ser tratadas como variáveis independentes, pois a opressão sofrida por cada uma está inscrita na outra.

Não há apenas uma forma de sexualidade, nem um único modelo identitário, há sexualidades e identidades. O conceito de sexualidades carrega a idéia da inclusão de diferenças e diferentes identidades. A riqueza humana reside nas diferenças e não na incessante luta para enquadrar diferenças em moldes pré-estabelecidos. Afinal, como adverte o adágio popular “o sexo entre as orelhas é mais importante que o sexo entre as pernas"




Referências bibliográficas

BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
BECK, U. Liberdade ou Capitalismo. São Paulo: Editora UNESP, 2003
FREUD, S.(1905) Três Ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Obras psicológicas completas: Edição Standard Brasileira. Vol. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
GIDDENS, A.. A Transformação da intimidade: sexualidade, amor & erotismo nas sociedades modernas. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1993
HALL, S. Identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu Silva, Guacira Lopes Louro. 2. ed. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 1992.
LAGO, M. C. S. Identidade: a fragmentação do conceito. In: SILVA, Alcione Leite da, LAGO, Mara Coelho de Souza; RAMOS, Tânia Regina Oliveira (Org.) Falas de Gênero: Teoria, análises e leituras. Editora Mulheres: Santa Catarina, 1999.
LOURO, G. L. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.
NUNES, S. A. O corpo do diabo entre a cruz e a caldeirinha; um estudo sobre a mulher, o masoquismo e a feminilidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
ROUSSEAU, J. J. Emílio ou da educação. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

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