sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Preconceito e indiferença: a invisibilidade social como geradora de violência urbana

Frankleudo Luan de Lima Silva

INTRODUÇÃO


A violência urbana se constitui como um dos principais problemas sociais da atualidade. No Brasil, principalmente nos grandes centros, a violência pode ser identificada como a maior preocupação assinalada pela sociedade e vem sendo alvo de numerosos debates no âmbito público e privado. É um tema que compreende fenômenos das esferas social, política e econômica, repercutindo diretamente na qualidade de vida da população. A violência urbana nos preocupa, sobretudo, pelo grau de desenvolvimento alcançado tanto em termos de freqüência quanto de intensidade.

Cotidianamente nos deparamos com notícias sobre atos violentos cometidos por pessoas das mais variadas faixas etárias, classes socioeconômicas e até mesmo entre familiares, embora tenhamos a tendência de atribuir os atos violentos apenas àqueles que se encontram em situações de risco, tais como jovens residentes em áreas urbanas em situação de pobreza.

A violência urbana, tida como uma das faces da violência, caracteriza-se como um fenômeno notavelmente social. Essa tipologia possui algumas características que a distingue de outros tipos de violência e se desencadeia em conseqüência das condições de convivência que a estância urbana possibilita.

Este estudo tem como objetivos traçar um recorte temático da violência urbana, investigando suas possíveis causações, sob a luz de ciências como a psicologia, sociologia e antropologia. A importância em estudar a violência se explica pelo fato de este ser um tema que oferece informações do modo de vida de determinado grupo social.

O presente ensaio está organizado da seguinte forma: na primeira parte da argumentação teórica exploramos a temática da violência urbana, abordando alguns conceitos e causas. Em seguida, trazemos uma discussão acerca da invisibilidade social como um dos fenômenos geradores da violência urbana. Nas considerações finais tentamos apontar, para a violência, possíveis formas de prevenção e de coibição.

MARCO TEÓRICO

Violência urbana: um fenômeno multideterminado

A temática da violência urbana enquanto fato jornalístico está sempre presente na grande imprensa. Também é certo que atualmente presenciamos discussões sobre violência urbana nas salas de aula, nos debates acadêmicos, nas instituições jurídicas, nas ruas e podemos verificar que o tema suscita debates calorosos. Falar em violência deixou de ser um ato circunstancial para se transformar numa forma cotidiana de ver e de viver no mundo de hoje. Nos últimos anos, a sociedade brasileira entrou para o grupo das sociedades mais violentas do mundo. Hoje, o país possui altíssimos índices de violência urbana, revelando, assim, um estado de anomia da sociedade onde o terror e a insegurança imperam.

A violência cotidiana cada vez mais assume um papel preponderante em todos os níveis da sociedade. Atualmente o tema da violência urbana vem sendo aceito como resultado de um processo que condiciona tanto a cultura como os valores sociais, econômicos e políticos, como declara Zaluar (2004). Nesse sentido, a violência pode ser apresentada como conseqüência de diferentes experiências sociais decorrentes da crise da modernidade que busca alternativas interpretativas para as descontinuidades da sociedade contemporânea. Para Bock et al (2007), a violência nas ruas é um problema que afeta, particularmente, os aglomerados urbanos maiores (embora esse fenômeno tenha se espalhado vorazmente para cidades menores). A rua deixou de ser o espaço social do encontro, da convivência, para se tornar, atemorizadamente, um campo de batalha, o espaço da insegurança, do medo e da violência. Sempre que saímos à rua, principalmente nas grandes cidades, carregamos conosco uma sensação de desconfiança, de que estamos sendo constantemente observados, caracterizando, assim, uma prática panóptica cotidiana.

Violência pode designar uma agressão física, um ofensa, um gesto que humilha, um olhar que desrespeita, um assassinato cometido com as próprias mãos, um modo hostil de contar uma história despretensiosa, a indiferença ante o sofrimento alheio, a negligência com os idosos, a decisão política que produz conseqüências sociais nefastas (Soares et al, 1996). Com isso, percebemos que atitudes violentas não são exclusividade do menino de rua que nos aborda no semáforo, do assaltante, do traficante ou do homicida. Estes geralmente, diga-se da passagem, também são vitimados pela indiferença e pelo desprezo dos quais a sociedade os impregna (Arendt, 1994).

Violência urbana é a expressão que designa o fenômeno social de comportamento deliberadamente transgressor e agressivo ocorrido em função do convívio urbano. Essa tipologia tem algumas características que a diferencia de outros tipos de violência e se desencadeia em conseqüência das condições de convivência que o recinto urbano oferece (Oliven, 1989). Sua manifestação mais evidente é o alto índice de criminalidade; e a mais constante é a infração dos códigos elementares de conduta civilizada.

Nas periferias das cidades nas quais a presença do Poder Público é fraca, o crime consegue instalar-se mais facilmente. São os chamados espaços segregados, áreas nas quais a infra-estrutura urbana de equipamentos e serviços é precária ou insuficiente, e há baixa oferta de postos de trabalho. Nesse contexto, sem inserção no mercado de trabalho, excluído e invisível socialmente, recebendo um estímulo potente e apelativo para o consumo, sem modelos referenciais próximos que se contraponham e concorram com o modelo que o crime organizado oferece (o apoio, o sentimento de pertencimento de grupo, o prestígio, o poder que uma arma representa) o jovem se torna mais vulnerável. Na sociedade do espetáculo, em que o consumo é endeusado, o crime é visto como forma de superação da exclusão social (Martins, 1997). Nessa perspectiva, violência não é ação, é, na verdade, reação. Em outras palavras, a violência não tem um caráter meramente destrutivo, ela funciona como um último recurso que tenta restabelecer o que é justo segundo a ótica do agressor.

A violência urbana se caracteriza pela multicausalidade. A disparidade econômica, traduzida na forte concentração de renda, cria um ambiente favorável ao surgimento da violência urbana e nesse âmbito, a falta de oportunidades, as portas sempre cerradas levam milhões de jovens aptos a ingressar no mercado laborativo a se tornarem “exército de reserva do narcotráfico”, como lembra Jaguaribe (1974). De fato, tal dessemelhança socioeconômica aparece funcionar como caldo de cultura para a disseminação da conduta delitiva. Também, não temos como desatrelarmos o fenômeno da violência urbana do crescente envolvimento da população com o consumo e comercialização das drogas (lícitas e ilícitas). O crescimento do tráfico de drogas, por si só, é também fator relevante no aumento de crimes violentos. As taxas de homicídio, por exemplo, são elevadas pelos “acertos de conta”, chacinas e outras disputas entre traficantes rivais. Assim, a inserção dos individuos na rede de atividades ilícitas, em especial o tráfico de drogas, é uma referência importante no estudo da violência urbana, em especial da criminalidade urbana (Souza, 1996).

Outro fator que infla o número de atos delitivos é a disseminação das armas de fogo, principalmente das armas leves. Discussões banais, como brigas familiares, de bar e de trânsito, terminam em assassinato porque há uma arma de fogo envolvida. No mundo do crime as armas são o poder, lembra Cianato (2000). O encarceramento em nosso país não tem se mostrado uma alternativa investida de sucesso. Enviados aos presídios, que o PCC chama de “faculdades”, muitos dos jovens viram reféns e posteriormente agentes do crime organizado. A apologia midiática à violência, a fragilização dos laços familiares, assim como a corrosão dos vínculos sociais, sintomas da crise que perpassa todas as instituições sociais são também citadas como geradoras da violência urbana.


Sobre a invisibilidade social

"Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz como são violentas as margens que o reprimem". (Bertolt Brecht)

A passagem da modernidade para a pós-modernidade gerou um novo modelo de sociedade. De uma sociedade vista por Foucault (1987) como “Disciplinar”, para um modelo de sociedade identificada por Deleuze (1992) como de “Controle”. Hodiernamente, encontramo-nos num momento de transição entre um modelo e outro. Estamos para sair de uma forma de encarceramento completo para uma espécie de controle aberto e contínuo.

A sociedade contemporânea foi descrita pelo francês Guy Debord (1997) como a sociedade do espetáculo na qual o lema: “Penso, logo existo” cede espaço para uma nova cartografia do funcionamento da vida, caracterizada por outro aforismo: “Sou visto, logo existo.” Diante dessa realidade é interessante compreendermos de que forma essa tão desejada e, até certo ponto, necessária visibilidade, bem como a invisibilidade social mantêm relações com o fenômeno da violência urbana. Este talvez seja um itinerário adequado para analisarmos tal fato.

Muitos atores sociais são constantemente vitimados pelas ações invisibilizadoras de nossa sociedade. O preconceito, o abandono, a repelência são formas por meio das quais a indiferença social se instala, criando indivíduos socialmente invisíveis. É no cotidiano que as atitudes discriminatórias geram a marginalização do outro, enquanto membro de um grupo diferente. A invisibilidade social é uma poderosa venda que usamos para não enxergarmos as misérias humanas escancaradas nas sarjetas da sociedade. É, fundamentalmente, um reflexo de um processo de estigmatização (Zaluar, Noronha e Albuquerque, 2009). Nesse sentido, a invisibilidade tem o “poder” de nos anular, seja através do isolamento e da solidão, seja por meio da incomunicabilidade e da desvalorização. Por não ser reconhecido ou minimamente notado, o menino de rua (típico indivíduo invisível), reage, ou absorvendo o estigma, aceitando a inferioridade que lhe é imputada, ou, conscientemente, não leva em consideração as agressões sofridas ou ainda se rebela através de atitudes violentas (Agüero, 1998).

Sandro Nascimento foi um desses garotos negros e pobres que transitam indigentes pelas cidades. São meninos socialmente invisíveis e o recurso que encontram para impor sua existência sociológica, para recuperar sua visibilidade, é o medo. A violência dos jovens, nesse caso, é o esforço desesperado de reconstrução do self, esmagado pela negação social mais dramática: aquela que superpõe à discriminação social o estigma da cor. A história de Sandro é narrada no filme brasileiro de 2008 Última Parada 174, do diretor Bruno Barreto. A narrativa ao mesmo tempo em que busca humanizar a figura de Sandro do Nascimento, desconstruindo a imagem de “demônio” que ficou cristalizada a partir do seqüestro por ele cometido (momento de clamor por visibilidade), o longa mostra também o processo de desumanização e estigmatização de um indivíduo pela miséria social. Sandro, longe de ser um caso isolado, só se faz perceptível aos olhos da sociedade quando ocorre uma tragédia.

Como esclarece Soares et al (1996), a estigmatização é uma produção social que se origina de atitudes impregnadas de pré-conceitos, “é como acusar alguém de existir, apenas por não se enquadrar na ‘normalidade’, isto é, por não fazer parte do grupo tido como dominante”, afirmam os autores (p.112). Atitudes estigmatizantes reforçam as diferenças, reafirmam estereótipos padronizadores de conceitos sobre um grupo e intensificam, assim, o comportamento discriminatório. Ainda segundo Soares et al (1996), ao projetarmos sobre um determinado indivíduo a figura de um sujeito nulificado e inferiorizado, tornamo-lo, de certo modo, invisível.

O fenômeno da invisibilidade social está dissolvido na sociedade, ligado diretamente as relações de poder. Todavia, autores como Batista (2003) e Castro (2005) a concebem como um mecanismo de defesa que penetra na subjetividade coletiva, em nível mais profundo do que a simples representação consciente, atuando, portanto, diretamente no inconsciente. Não se trata pura e simplesmente de uma insensibilidade diante do outro, mas de um bloqueio de percepção, uma anestesia de sensibilidade ao sofrimento alheio que serve para nos livrar do que é dolente. A invisibilidade, nesta concepção, procede como forma de amnésia seletiva que objetiva a conservação do equilíbrio psíquico frente à aflição do outro.

Contudo, convém lembrar que somos todos nós os produtores e os produtos dessa sociedade míope. Somos co-autores no silêncio e na naturalidade com que encaramos esse estado de coisas. Os atos de violência urbana se sucedem e já são cotidianos. O risco é que nos acostumemos a essa rotina de tragédias e naturalizemos o quadro caótico, absurdo, e brutal em que vivemos. É importante manter viva a perplexidade, pois ela é a matriz do pensamento, da reflexão, mas é preciso transcender essa sensação, readquirindo o senso de humanidade (se é que nós já o tivemos). Se mantivermos a indignação com os acontecimentos, nos impediremos de naturalizá-los, abriremos caminhos de contorno e encontraremos possibilidades de recuperação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante da banalização da violência, a sociedade sempre exige que o Estado se utilize da repressão como se fosse a melhor estratégia para o enfrentamento dos conflitos urbanos. Isso origina um emaranhado de normas penais visivelmente ineficazes, fruto de uma clara predileção vingativa.

Dessa forma, a criminalidade prosseguirá crescendo, pois está atrelada a uma estrutura social profundamente injusta e desigual. Pobreza não gera violência, mas desigualdade, desordem urbana e impunidade, sim. Caso não se atue nesse ponto, será inútil punir e continuará sendo equívoca a idéia de que se pode corrigir castigando.

Torna-se urgente, portanto, um aprimoramento da política de segurança pública, pois enquanto a sociedade não se conscientizar da importância da prevenção, será muito difícil implantar uma atuação correta em resposta à criminalidade. A descentralização do poder decisório do Estado por meio da participação direta dos cidadãos no planejamento da segurança urbana deve se constituir como um dos pilares dessa prevenção.

As estratégias de enfrentamento devem, por assim dizer, possuir diretrizes que oscilem entre a repressão e a prevenção. A prevenção pode ocorrer em diversos níveis: promovendo a integração social e igualdade entre os cidadãos; dificultando o acesso as armas, drogas e álcool; com foco em programas educacionais infantis e de jovens em situação de risco, com o apoio das instituições governamentais, de ONGs, do ciclo de justiça criminal (polícias, justiça, promotoria, sistema prisional, entre outros), da mídia e das entidades acadêmicas.

Referências

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BOCK, A. M. B. ; FURTADO, O. ; TEIXEIRA, M. L. T. Psicologias: uma introdução ao estudo de Psicologia. 13 ed. reform. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2007.

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CIANATO, A. M. P. Da violência no ethos cultural da contemporaneidade e do sofrimento psicossocial. PSI – Rev. Psicol. Soc. Instit., Londrina, v. 2, n. 2, dez. 2000. Disponível em<>

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Última parada 174. Direção: Bruno Barreto. Produção: Patrick Siaretta, Paulo Dantas, Bruno Barreto e Antoine de Clermont-Tonnerre. Roteiro: Bráulio Mantovani. Brasil: Paramount Pictures do Brasil, 2008. 1 DVD (110 min).

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ZALUAR, A.; NORONHA, J. C.; ALBUQUERQUE, C. Violência: pobreza ou fraqueza institucional? Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 2009.

Império da cultura imagética e solidificação de valores estéticos: ensaio sobre o consumismo


Empire of the image culture and solidification of aesthetic values: essay on consumerism

Frankleudo luan de Lima Silva

Faculdade de Psicologia-UEPB

Resumo

Numa sociedade onde a cultura quantitativa e imagética predomina e os valores éticos perdem espaço para valores estéticos, o consumo não é realizado apenas para satisfazer necessidades, ditas de sobrevivência, mas é feito devido a todo um conjunto de valores de diversas naturezas a que é associado. O consumismo é estimulado pelos meios de comunicação de massa e de homogeneização de cultura, característica marcante da globalização. Este ensaio pretende esclarecer como aspectos ideológicos, ontológicos, axiológicos e psicossociais se relacionam com o fenômeno do consumismo.

Palavras-chave: Consumismo, cultura imagética, valores estéticos


Abstract


In a society where image culture and quantitative predominates and ethical values lost space to aesthetic values, consumption is not done just to satisfy needs survival, but it is done due to a set of values of various types that are associated. Consumerism is driven by means of mass communication and homogenization of culture, characteristic of globalization. This essay aims to clarify how aspects ideological, ontological, axiological and psychosocial relate to the phenomenon of consumerism.

Keywords: Consumerism, image culture, aesthetic values


INTRODUÇÃO


Vivemos de aparências e nos preocupamos com o ter em detrimento do ser. Esta construção axiomática bastante recorrente e emblemática de nossa cultura, lamentavelmente, reflete como a sociedade em que vivemos parece estar empenhada em adquirir propriedade, priorizando a obtenção de lucro; como nos deixamos levar pelo consumo dirigido; como a maioria das pessoas vê o modo TER de existência como o mais natural e até mesmo o único modo de vida aceitável. Bombardeados pelos apelos do consumo, somos consumidos pelos desejos de consumir.

O que nos impulsiona na direção do ter, do consumir, do poder? O patrimônio, que deveria ser complemento de felicidade, passou a ser um fim em si mesmo. Por quê? Em uma sociedade cada vez mais baseada em valores materiais, o homem continua cada vez mais atribulado, automatizado, flébil e infeliz. Consome vorazmente o que pode. Quando não pode, sente-se inferior, apoucado, sem valor. Psíquica e morbidamente obeso, tem uma fome que não consegue saciar, porque não procura o alimento adequado à sua verdadeira natureza. Seus referenciais são representados pelo que se pode obter com o modo de vida capitalista. Acumulando descomedidamente coisas, o ser humano passa a ser, ele também, coisa: de possuidor passa a possuído. Em tal condição, descarta e é descartado (Fromm, 1987).

Erich Fromm, um eminente psicanalista, sociólogo e filósofo alemão do século XX, aborda brilhantemente essa temática, apontando como uma das principais premissas para o fenômeno do consumismo desenfreado, o processo de alienação social. Segundo Fromm (1988), o indivíduo cultivou interiormente sentimentos de desamparo e solidão, pois perdeu o contato com sua dimensão mais humana, deixou de ampliar suas virtudes, e assim tornou-se incapaz de interagir com os mesmos aspectos essenciais das outras pessoas. É a este processo que ele chama de alienação social, oculta por trás das máscaras de cada um, mas mesmo assim capaz de exercer um impacto sobre a sua humanidade.

MARCO TEÓRICO

O consumismo é uma das características marcantes da sociedade e da própria condição de existência do homem moderno. Volta-se para a própria essência do capitalismo, ou seja, a venda de produtos e serviços com vistas à apropriação do lucro. Os processos que permeiam o consumismo exarcebado em nossa sociedade estabelecem relações com um mecanismo produtor e produzido pelo modo de TER de existência, qual seja: a ideologia. Como aponta Scitovsky (1986), consumismo é fundamentalmente uma ideologia. Na perspectiva de Chauí (1991), ideologia se configura como um mascaramento da realidade social que permite legitimar as condições sociais de exploração e de dominação, fazendo com que pareçam verdadeiras, naturais e justas. Nas palavras de Bock et al (2002) “a ideologia é um sistema de representações e crenças que encobrem a realidade, falseando-a e não permitindo que percebamos e questionemos as contradições de nossa sociedade” (p.249). Destarte, a ideologia consiste precisamente na transformação das idéias das classes dominantes em idéias dominantes para a sociedade como um todo.

O que torna a ideologia objetivamente possível é o processo de alienação, isto é, o fato de que, no plano da experiência vivida e imediata, as condições reais de existência social dos homens não lhes pareçam produzidas por ele, mas ao contrário, eles se percebem produzidos por tais condições e atribuem a origem e funcionamento da vida social a forças superiores, alheias às suas (deuses, Natureza, destino, etc.). O conjunto lógico e sistemático de idéias, valores e condutas que a ideologia prescreve aos membros de uma sociedade, o modo como estes devem pensar, o que devem valorizar e como devem valorizar, o que devem fazer e como devem fazer, reforçam e sustentam a dominação. A ideologia do consumo ou consumismo diz muito da nossa sociedade, porém de forma subjacente: ela não fala apenas da riqueza presente nos produtos e serviços consumidos, mas expõe as várias faces da dimensão afetiva, valorativa - seja do indivíduo, seja da sociedade – presentes no universo real e irreal do consumo, como esclarece Debord (1997).

Ocorre que a ideologia do consumo se vincula a interesses mercadológicos e o seu grande sucesso, bem como suas conseqüências, transcendem a questões de natureza puramente econômica. Dito em outras palavras, o consumo não se limita à mera satisfação de necessidades básicas de sobrevivência, pois está carregado de aspectos subjetivos e culturais. Nesse sentido, um importante itinerário para se pensar o consumismo é o da cultura através de massas. Tentando explicar a dinâmica da cultura industrial, enfatizando que esta se relaciona intrinsecamente ao consumismo, o teórico francês Edgard Morin explica que o sistema capitalista necessita não somente de um aparato infra-estrutural (produção, mão-de-obra, tecnologia, etc.), mas precisa de instrumentos que conquistem a dimensão subjetiva e valorativa com o intuito de convencer o sujeito a consumir produtos e serviços (Morin, 1967). Indústria cultural ou cultura industrial, portanto, diz respeito à criação industrializada, à padronização cultural voltada para o mercado de consumo (Adorno & Horkerheimer, 1985).

Desde a Revolução Industrial a produção e o consumo de mercadorias vêm se intensificando gradativamente, e acompanhando essa evolução o consumismo se tornou uma mentalidade que alimenta e estimula a ótica da produção e do lucro na ênfase dada às necessidades, mesmo sendo estas, por vezes, objetivamente inexistentes, como aponta Vicentino (1997). Segundo a lógica capitalista, a maioria dos bens de consumo é fabricada para não ter grande durabilidade, o efeito do consumo é evanescente, logo perde sua característica de satisfazer, exatamente para favorecer uma constante busca de compra, oferecida pela venda dos produtos, mantendo sempre vivas as leis de mercado feitas pela procura e pela oferta. E a propaganda estimula o consumo, criando necessidades e levando as pessoas a consumirem, alimentando a produção e o comércio.

O que parece estar acontecendo é que os comportamentos, as normas e o sentido global da vida individual e comunitária, não se inspiram em padrões éticos de valores, preferindo-se aluir ao sabor de critérios imediatistas, consumistas, hedonistas e pragmáticos. Num português mais direto, o desaparecimento das raízes morais parece fazer do prazer o critério fundamental das escolhas, privilegiando-se o que se pode ter agora, consumir vertiginosamente. Assim, a vida é inutilmente queimada no fogo da vaidade, da ganância, da futilidade, tornando-se insuportavelmente fugaz (Bauman, 2008).

A conseqüência do TER, em detrimento do SER, é o esvaziamento moral, afetivo e espiritual. Sentimos a frieza do outro, sua falta de calor, de respeito e, principalmente, de amor sem perceber que também somos condutores de frieza e de ausência de afeto. O homem destrói por ganância o meio em que vive. Predadores e cruéis, importamo-nos apenas com o lucro que poderemos auferir (Fromm, 1988). Os meios de propaganda, com apelos hipnotizantes cada vez maiores e mais fortes na direção do consumo, tornaram-se os reais condutores da existência do homem moderno. Ou seja, a orientação no sentido do TER é característica da sociedade industrial ocidental, na qual a avidez por dinheiro, fama e poder tornou-se o tema dominante da vida. Com isso, a alternativa entre TER e SER parece não se mostrar apelativa numa sociedade onde a própria essência do SER parece residir, cada vez mais, no TER. O TER promete, assim, transformar o SER.

É mais fácil definirmos o modo TER de existência que o modo SER de viver no mundo, justamente porque TER é de fato o que mais vivenciamos em nossa cultura. TER refere-se a posses, coisas, e coisas são determináveis e definíveis. Na estrutura do TER, a palavra inerte domina. Nesse modo de existência não há relação viva entre mim e o que eu tenho; vivo na condição de objeto, manipulado, dirigido e tiranizado por estímulos deslumbrantes da ideologia consumista; meu sentido de identidade repousa em meu possuir. A coisa e eu convertemo-nos em coisas, e eu a tenho porque tenho o poder de fazê-la minha. A relação, portanto, é de inércia, passividade e não de vida (Slater, 2002).

Nas palavras de Fromm (1988), o modo SER “(...) refere-se à experiência, e a experiência humana, em princípio não é definível” (p.96). Paira então a seguinte interrogação: em que consiste o modo SER? “SER” exige renúncia da egocentridade, é uma fuga à prisão do imediatismo, da superficialidade, do próprio eu isolado, do consumo excessivo, como alerta Helsinger (2004). O modo SER tem como requisitos a independência, a liberdade (portanto, responsabilidade) e a presença de razão crítica. Sua característica fundamental vislumbra um ser ativo, no sentido de atividade íntima, de emprego criativo das faculdades e talentos humanos.

Na sociedade de consumo, aparentemente, há pouco espaço para valores espirituais. A modernidade, com seu “progresso”, levou a humanidade a uma situação de falta de referências, a um vazio moral, embora se tenha materialmente quase tudo (Rojas, 1996). A cultura do TER se solidifica diante de tanta prosperidade tecnológica, enfraquecendo a compreensão do SER. Mediante essa supervalorização da posse, dos bens materiais em vez do humano instaura-se a crise. Uma crise ontológica, mística e existencial, explica Längle (1992). O homem está desnorteado em meio a tanta superficialidade. A cultura do prazer imediato e da satisfação dos desejos a qualquer custo, como algo que pode ser encontrado na próxima prateleira, leva a intensificação dessa crise. O cultivo da desenfreada busca pelo prazer e da supervalorização da estética se torna o novo código de comportamento. É isso que para Rojas (1996) “(...) significa a morte dos ideais, a ausência de sentido e a busca de uma série de sensações cada vez mais novas e excitantes” (p.14).

No afã de alcançar “satisfação” e de suprir suas necessidades auto-afirmativas, o homem cai no consumismo, que lhe é apresentado como meio. O consumismo, como alerta Frankl (1991), apresenta-se como a receita pós-moderna de liberdade. A falsa liberdade (liberdade que ao sujeito escraviza e manipula) confunde-se com permissividade. Tudo é permitido, desde que o fim seja alcançado – o prazer a todo custo. Como o prazer é algo que não pode ser por completo satisfeito, uma vez que seu fator gerador é o desejo e o homem é um ser de estrutura desejante, há sempre uma nova busca, um novo “ideal” a ser perseguido. O homem é levado a crer que possuindo, tendo, adquirindo, ele encontra a liberdade e, sendo livre, encontra o prazer.

Outro aspecto que deve ser tratado para se compreender os fatores que envolvem o consumismo irrefreável remete-se à reflexão a respeito do anseio, presente em nossa sociedade, pelo culto à imagem, ao espetáculo, ao business. Impressionar torna-se a palavra de ordem na sociedade cuja produção da cultura mercantiliza a própria violência, a própria tragédia, a banalização da sexualidade. Na indústria cultural hegemônica, o ético se transforma no estético que, por sua vez, condiciona a própria existência do indivíduo. Importa mais do que tudo a imagem, a aparência, a exibição (Costa, 2004). Fica-se a impressão de que a ostentação do consumo vale mais que o próprio consumo. A “sociedade do espetáculo”, termo pensado pelo escritor francês Guy Debord, resume brilhantemente essa veleidade presente na cultura consumista de presenciar o espetáculo, como se fosse uma tentativa de compensar a vida pobre (em diversos âmbitos) e fragmentária, contemplando e consumindo passivamente as imagens de tudo o que falta ao homem em sua existência concreta. A sociedade moderna passa a ser compreendida, então, como o reino do espetáculo, da representação fetichizada do mundo dos objetos e das mercadorias. O espetáculo, assim, consagra toda a glória ao reino da aparência (Debord, 1997).

A idéia de sociedade do espetáculo casa muito bem com a idéia do filósofo francês Jean Baudrillard, ao afirmar que consumimos signos, e não coisas. Esses signos nos são inculcados por meio do arsenal midiático, e interagem com nossas estruturas subjetivas; por isso o consumo, mesmo que não possa ser efetivamente exercido, está presente nas crenças e desejos existentes no indivíduo. Os signos de poder, status, fama, sucesso são consumidos avidamente pelas pessoas porque há uma cultura do "chegar lá". Interessante que o "crescimento" das pessoas é "medido", reconhecido e valorizado pela quantidade de bens que elas acumularam, e não quanto ao crescimento como seres politizados, pensantes, altruístas, humanos (Baudrillard,1991).

O consumo compulsivo e o ato toxicômano, que figuram como sintomas da ideologia consumista, podem evidenciar um comprometimento psíquico de maior relevância. O consumo compelido é encarado como algo que despersonaliza, como tentativa de preencher o vácuo existencial causado, como exorcização das angústias. A compulsividade mascara desordens emocionais e afetivas (Helsinger, 2004). É uma espécie de camuflagem sentimental, pois reflete um abismo de carências que se tenta preencher por meio de um regime compensatório de satisfação superficial de conflitos interiores. E ainda, o consumo muitas vezes é estimulado pela concessão de oportunidade de se pertencer a um determinado grupo social que proporcione claros sinais de identidade, sobretudo para adolescentes, explica Severiano (2001). O consumo nessa ocasião cria signos de visibilidade e é um dos demarcadores da identidade grupal.

Considerações finais

A sociedade hodierna tem preferido a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser. Tal ideologia desvirtua o pensamento do indivíduo que enleia as noções de TER e SER. Percebemos com isso, uma vulgarização da experiência humana que vem se abalizar, dentre outras formas de manifestação, pelo comportamento consumista irracional e descomedido. Ocorre que tanto o modo ter como o modo ser de existência são potencialidades da natureza humana; que nosso impulso biológico à sobrevivência tende a estimular o modo ter, mas que egoísmo e indolência não são as únicas propensões dos seres humanos.

Não menos em importância é este outro fator: as relações das pessoas para com a natureza tornaram-se profundamente hostis. Sendo nós “caprichos da natureza”, que pelas próprias condições de nossa existência estamos no seio da natureza e pelo dom da nossa razão transcendemo-la. Temos tentado solucionar nosso problema existencial desistindo da visão messiânica da harmonia entre humanidade e natureza pela conquista da natureza, mediante transformação dela a nosso critério, até que a conquista se tenha tornado cada vez mais equivalente à destruição. Nosso espírito de conquista e hostilidade cegou-nos para o fato de que os recursos naturais têm seus limites e pode de fato esgotar-se (Sirgy, 1982).

Frente a uma humanidade que se encontra sem fundamentos, sem direção, moralmente estéril e fadada ao malogro, urgem mudanças na maneira como vivenciamos a alteridade; nos valores que devem compor nossa existência, repudiando aqueles que nos são vendidos; no modo como lapidamos nossa consciência ecológica e política. Diante disso, Fromm (1987) aponta para a necessidade de uma nova e profunda revolução socioeconômica e psicológica capaz de fazer desviar a rota catastrófica que temos delineado, e impedir, assim, a ruína social, psicológica e ecológica que se afigura no horizonte.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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