quarta-feira, 18 de agosto de 2010

O Homem, a solidão e a cena pós-moderna

Muitos são os enfoques teóricos voltados à investigação do mote que circunscreve e motiva a experiência da solidão, seja esta apreendida como uma disposição ontológico-existencial, conforme declara algumas linhas da filosofia; seja compreendida do ponto de vista sociológico, que a considera fruto da produção social de um homem “egocentrado”, individualista e narcisista; seja ainda resultado da exclusão do indivíduo da sociedade convencional, por inadaptação ou pela recusa em aceitar determinados parâmetros adotados socialmente.
Numa primeira sondagem, a idéia de solidão remete-nos a situações de desamparo ou de abandono real e/ou simbólico; a uma sensação de carência absoluta. Para Tamayo e Pinheiro (1984), a solidão se caracteriza pela insuficiência de interação e comunicação emocional e pela falta de aproximação afetiva advinda da superficialidade das relações. Ao ponderarmos sobre o assunto, deparamo-nos, pois, com uma série de indagações, quais sejam: a solidão se constitui, por excelência, como estado pernicioso e degradante ou é um pressuposto essencial para o processo de autoconhecimento? Tem suas origens no mais íntimo do ser humano ou é tão-somente um sintoma cultural? A pós-modernidade tem aguçado o encapsulamento do homem em si mesmo, demarcando uma nova cartografia do funcionamento da vida?
O ponto de partida aqui adotado para se discutir essa temática segue a pensamento nietzschiano. A experiência da solidão em Nietzsche assume a perspectiva da criação, da coragem necessária ao homem reinventar-se a cada momento no dinâmico jogo existencial. Com isso, Nietzsche muda de órbita todo aquele sentido “danoso” que o homem moderno atribuíra à solidão. Para o filósofo alemão, a solidão nada tem a ver com a presença ou ausência de pessoas, mas é, por fundamento, o elemento constitucional do viver, na medida em que possibilita ao homem o contato íntimo consigo mesmo e assim descobrir uma vontade de potência que lhe permita uma relação mais legítima com a vida (Nietzsche, 2007; 2008).
Portanto, a solidão para Nietzsche é inerente à própria constituição do fenômeno da vida. Não é algo que esteja sob a tutela de nosso querer.
Todo processo de auto-superação, de tornar-se si mesmo, implica no pressuposto essencial da solidão como condição para o seu exercício. Conforme assegura a filosofia nietzschiana, há milênios o homem tem construído sua vida sob a ordem do gregário; este homem reconhece o que é bom para si a partir da legitimação do que é bom para a maioria (Nietzsche, 2000). O próprio rebanho trata de penitenciar aquele que se desgarra. Nietzsche reconhece, pois, na experiência da solidão um contraposto a essa ideologia. É necessário ser forte para olhar para si próprio pleiteando superar-se. Perante a difícil tarefa desse homem que se depara com uma cacofonia de vozes, contraditórias e conflitivas, a superação se deflagra apenas atingindo-se o estado de super-homem, um novo ser que, trazendo as novas tábuas, contempla a transmutação dos valores e o despertar para uma nova moralidade (Nietzsche, 2008). Esse além-do-homem se caracteriza por seu assentamento absoluto, pela confiança em sua intuição, pelo seu caráter inquebrantável, por uma solidão ativa, corajosa. A capacidade de estar só denota, em instância culminante, a expressão do amadurecimento de si, finaliza Nietzsche (2007).
Lançando mão da perspectiva existencialista, Martin Heidegger, filósofo do século XX, aponta a solidão como uma condição original do ser-no-mundo, o qual tem que reafirmar e edificar-se a si mesmo cotidianamente durante sua existência. Em Ser e Tempo, Heidegger declara que a solidão é para o ser humano uma marca ou uma determinação ontológica. Cada um de nós é só no mundo. É como se o ato de nascer fosse uma espécie de lançamento da pessoa à sua própria sorte. Podemos nos amoldar a isso ou não, alega o filósofo. Contudo, diferenciamo-nos uns dos outros pelo modo como lidamos com a solidão e com o sentimento de liberdade ou de abandono que dela dimana, dependendo da maneira como interpretamos a origem de nossa existência. A partir daí podemos estabelecer dois estilos de vida diferentes: livre, autêntico e autodeterminado ou dependente, inautêntico e subordinado aos outros (Heidegger, 1993).
Apesar de o homem se fazer no e a partir do mundo, a sua condição de solidão reside no fato de que quando ele tem que efetivar-se como ser-no-mundo, lançado à cotidianidade, não pode contar com o mundo, mas apenas consigo, já que somente por si mesmo pode realizar o seu ser. Desse modo, a solidão singulariza o homem. (Heidegger, 1999). Podemos escolher estarmos com pessoas, mas ninguém nascerá, adoecerá, viverá ou morrerá em nosso lugar. Nesse sentido, o Outro é necessário para viver “com” e não “por” nós, isto é, não podemos fazer dele o personagem principal de nossa história e nos colocarmos como coadjuvantes e secundários. Sobre esse aspecto, Feijó (2000) afirma que a solidão, enquanto condição de abertura para o mundo é uma contingência da qual não se pode escapar tampouco compartilhar.
Como lembra Harvey (2004), os efeitos dessa disposição ontológica da solidão que tipifica o ser humano, na contemporaneidade tornam-se mais notáveis. A pós-modernidade marcada por grandes avanços científicos e tecnológicos e pela expansão dos meios de comunicação tem gerado, paradoxalmente, uma crescente sensação de solidão. Na atualidade a experiência da solidão adquire novos contornos e definições (Harvey, 2004). Antes, porém, de investigarmos tais conjeturas, um questionamento se faz cogente, a saber: o que caracteriza a pós-modernidade?
Pode-se dizer que estamos chegando ao encerramento de uma época com o surgimento concomitante de outra, caracterizada diversamente por vários autores: pós-modernidade, pós-modernismo (Lyotard, 2008), sociedade pós-industrial (Giddens, 1991), modernidade reflexiva (Giddens, Beck, Lash, 1997), modernidade tardia (Giddens, 2002), hipermodernidade (Lipovetsky, 2004).
A era pós-moderna clarificou o fato de que o mundo é gerido pela incerteza, e não mais pela certeza e pela existência de verdades únicas e congeladas, conforme prometia a ciência, e fez com que o homem tomasse consciência disso. Assim, parece possível dizer, segundo o sociólogo polonês Bauman (1999), que o desconforto causado pela certeza de que não há saídas nem soluções para a incerteza que pauta e ordena a vida é a fonte de mal-estares. A grande incerteza frente às coisas, a falta de garantias, marca registrada da pós-modernidade, advêm da superação do estatuto da ciência como algo onipotente, onipresente e onisciente. Neste sentido, a pós-modernidade evidencia o fato de que a ciência, por tudo o que se sabe e o que se pode saber, é apenas uma versão dentre muitas.
Segundo Pondé (2001), a pós-modernidade é o despertar malfazejo de um sonho colorido, já que se revogaram as referências, as regras impostas pelas teorias. Não há nenhuma cartilha a ser seguida. Por este motivo, alguns teóricos preferem chamá-la de contra-modernidade, já que se tem precisamente o avesso do que era antes. Tudo o que a modernidade havia edificado fora por água abaixo, transformado em líquido, uma modernidade líquida, como Bauman (1999; 1997; 2004) exemplifica, parodiando a apotegma marxista de que “tudo que é sólido desmancha no ar”, a modernidade se desfez não no ar, mas como líquido, sem forma, se espalhando, se esvaindo.
Uma das cicatrizes emocionais deixadas pela pós-modernidade foi o medo do vazio, representado pela ausência daquele padrão inequívoco, obrigatório e universal. Deste modo, o pesadelo do homem contemporâneo é, segundo os teóricos da pós-modernidade, ficar sozinho, alienado, à deriva, sem raízes (Pavlosk, 2005). Para Ruggero (2004), a solidão é, na atualidade, considerada um das mais graves contingências que desafiam o homem. Souza (2000) também destaca que a solidão demarca a vida do homem pós-moderno. A ampliação técnico-científica, com suas formidáveis potencialidades de humanização e de socialização, contrapõe-se à crescente solidão e ao individualismo narcisista suscitado nas relações sociais (Jorge, 1998; Moreira, 2003).
O que parece de mais emblemático e contundente em relação a este momento é o impacto que suas características têm causado nos sujeitos e em seus modos de viver. Para Bauman (1999), a solidão passou de um sentimento esporádico para uma condição padrão à medida que a rejeição das pluralidades e diferenças se intensificou. Bauman (2004) descreve muito bem o sentimento de não pertencença, fruto das novas cartografias da pós-modernidade, quando refere que ninguém mais considera o outro seu afim, e que hoje, a grande incerteza não diz respeito a qual grupo eu pertenço, e sim à dúvida de realmente pertencer a algum. Trata-se da “era do vazio” (Lipovetsky, 1989). E na tentativa de fugir da solidão, o homem perde a oportunidade de usá-la como recurso poderoso, capaz de fazê-lo entrar em contato consigo mesmo para, a partir de então, amadurecer e melhorar significativamente seus relacionamentos. A esse respeito, May (2002) nos diz que o homem, ao fugir da solidão perde, assim, a única coisa que o ajudaria positivamente a vencer a solidão a longo prazo, isto é, o desenvolvimento de seus recursos interiores, da força e do senso de direção, para usá-los como base de um relacionamento significativo com outros seres humanos. Trata-se, nesse caso, de assumir a solidão ontológica inerente ao Ser. Nas palavras de Lipovetsky (1989):

“(...) quanto mais a cidade desenvolve possibilidades de encontro, mais sós se sentem os indivíduos; mais as relações se tornam emancipadas das velhas sujeições, mais rara é a possibilidade de encontrar uma relação intensa. Em toda parte encontramos a solidão, o vazio, a dificuldade de sentir”(p. 77).

Atrapalhadamente, maneiras de não sucumbir ao sentimento de vazio e desamparo são freneticamente buscadas, no afã de efetivamente encontrar o que todos falam que a pós-modernidade veio trazer: o prazer sem limite, a estetização, os espetáculos, enfim, a felicidade irrestrita. O problema foi que a corrida atrás deste sonho pós-moderno produziu alguns “rejeitos”: aqueles que fracassaram e não encontraram o prazer, o cenário belo, uma vida brilhante e espetacular. Na atualidade, o autocentramento do sujeito atingiu limiares impensáveis, apresentando-se pela exagerada estetização da existência, onde a exaltação do próprio eu é o que mais importa. Nesse contexto, se o contemporâneo é marcado pelo predomínio do imperativo do prazer, o consumismo funciona como uma resposta social ao mal-estar próprio dos dias atuais, e assim como as toxicomanias, serve para silenciar a dor de se descobrir sem referências (Lima Silva, 2009).

A ambivalência dos vínculos afetivos

Várias análises e elucubrações descrevem o mundo contemporâneo como uma era marcada por um alentado individualismo em nosso convívio social, predominando um enfraquecimento na negociação de interesses comuns (Gomes & Silva Junior, 2007). Autores como Leite (2009) caracterizam a condição pós-moderna de existência como sendo abalizada pela desestruturação dos saberes, pelo anonimato do modo de vida atual e pelo esmorecimento da solidariedade inter-humana, produzindo, assim, laços sociais desarrumados.
A fragilidade dos vínculos humanos são enigmáticos, colidentes e inseguros na exata medida em que o homem contemporâneo está abandonado ao seu próprio aparelho de sentido, de modo que tal aparelho tem, ao mesmo tempo, grande facilidade de conceder e descartar sentido nas suas relações (Angerami-camon, 1990). Mesmo ávido por relacionar-se, o homem moderno não abre mão de seu alvedrio. Desta maneira, temos um novo arquétipo de relação: é a relação líquida, frouxa. Nas palavras de Bauman (2004), temos vivenciado "a misteriosa fragilidade dos vínculos humanos, o sentimento de insegurança que ela inspira e os desejos conflitantes (estimulados por tal sentimento) de apertar os laços e ao mesmo tempo mantê-los frouxos” (p. 8).
A vontade de estar confinante e ao mesmo tempo de não estabelecer relações duradouras é uma das principais marcas denunciadoras da ambivalência característica dos relacionamentos atuais. Tal ambivalência decorre, principalmente, da inconstância que impera na modernidade líquida, época de incertezas e inseguranças oriundas do risco que poderá acarretar um novo relacionamento diante do qual previsões e mecanismos de controle não mais surtem efeitos (Guedes, 2005). Bauman (1997) pontua que na líquida modernidade, os relacionamentos adquirem um perfil de acúmulo de experiência, todavia argumenta que essa perspectiva possui um lado perverso. A ânsia de que o relacionamento subsequente seja melhor que o anterior leva a uma inabalável não-realização do que se está vivendo no momento. A expectativa do próximo contato afetivo eclipsa a vivência do atual e as pessoas se tornam caçadores de amores cada vez mais perfeitos. No entanto, esse fastígio não se realiza, pois cada experiência é vista apenas como episódica e desencaixada diante da própria fragilidade dos relacionamentos. Neste sentido, Bauman (1997) acredita que essa busca pode levar, de forma contraditória, à incapacidade de amar.
A coeva fragmentação dos laços humanos produz, como supracitado, sentimento de precariedade que incute, concomitantemente, desejos e sentimentos ambíguos de estreitamento e frouxidão dos laços. E mesmo diante da insegurança nos relacionamentos e do contexto de individualização, há sim um esforço por relacionar-se, porém os relacionamentos a longo prazo que envolvem compromisso, parcerias e engajamento mútuo são encarados com desconfiança e ameaça . Ao que parece, o homem moderno busca o outro, mas mantém este outro a uma distância que permita o exercício da liberdade. O outro e o eu se relacionam, portanto, diante da dúvida. Nessa perspectiva, toda relação oscila “entre sonho e o pesadelo e não há como determinar quando um se transforma no outro”. (BAUMAN, 2004, p. 8).
A pós-moderna concepção do indivíduo desenraizado trouxe implicações para as idéias a respeito do amor hodiernamente experienciado. Devido ao uso descontextualizado que a indústria cultural faz do ideal romântico, este passou a ser visto como um produto para se consumir. O ideal de amor que é hodiernamente comercializado pelos meios de comunicação de massa entra em franco conflito com os significados originais que tal ideal possuía (Costa, 1998). Para este autor, consumimos atualmente um ideal amoroso pertencente à era dos sentimentos, porém vivemos na era das sensações, onde experimentar é a palavra de ordem. Sobre este aspecto, Pondé (2001) assinala o confronto de duas concepções de relação com o mundo: a utópica e a trágica. Esta última tende a afastar os fantasmas da perfeição (vida perfeita, sexo perfeito, amor perfeito, juventude eterna, felicidade plena) que a concepção utópica de mundo comporta.
Costa (1998) assegura, portanto, que “vivemos numa moral dupla: de um lado, a sedução das sensações; de outro a saudade dos sentimentos. Ambicionamos um amor eterno e com data de validade marcada: eis sua incontornável antinomia e sua imortal vicissitude” (p. 21). É nessa conjuntura ambivalente, densamente marcada pela individualização radical, hedonismo e cultura consumista, que os novos encadeamentos amorosos, ou pelo menos a vivência deles, constroem-se.
Nessa “lógica” contemporânea, o risco representado pela deliberação de ingressar principalmente em relações amorosas leva as pessoas a se ampararem em dois tipos de estratégias de proteção: a fixação e a flutuação (Bauman, 1997). A fixação pode ser entendida como uma busca de preservar o relacionamento, não obstante à impossibilidade de controlá-lo. Trata-se do

"esforço para emancipar o relacionamento de sentimentos erráticos e vacilantes, para assegurar que – aconteça o que acontecer com suas emoções – os parceiros continuem a beneficiar-se dos ‘dons do amor’: o interesse, o cuidado, a responsabilidade do outro parceiro. Um esforço para alcançar o estado em que se possa continuar recebendo sem dar mais, ou dando não mais do que o padrão estabelecido exige" (BAUMAN, 1997, p. 115).

Nesse sentido, o indivíduo tenta desviar a amargura e a temível possibilidade do fim do relacionamento. Investe-se na pretensão de preservar o objeto cuidado, ainda que exija abnegações ou mesmo implique rotinas. Investe-se, portanto, no exercício da tolerância para lidar com a diferença que a alteridade representa, diferença que deve ser aturada sob pena de resultar no término do relacionamento.
De acordo com Bauman (2004), os simpatizantes da flutuação, entretanto, não apresentam a mesma persistência. Não se dispõem a fazer muitas concessões. A flutuação assevera o direito dos consortes à renúncia unilateral. Na flutuação, a liberdade para se abdicar a relação a qualquer momento é latente; o amor assume, assim, a sua face episódica, ou seja, não se alicerça em compromissos morosos. Prima-se pela imediaticidade em detrimento do futuro; o rumo do relacionamento não tem tanta importância. Não há, por assim dizer, qualquer tipo de garantia.
A fixação e a flutuação intercedem, cada uma a seu modo, a sutil demarcação entre segurança e dependência (como um tipo de possessão/escravidão), por um lado, e liberdade e insegurança, por outro. Esses extremos, em torno dos quais podem ser alocados os relacionamentos, são responsáveis pela ambivalência que tipifica os afetos (BAUMAN, 2004).

Breves considerações finais

As reflexões aqui apresentadas objetivaram trazer para o foco de investigação o conceito de solidão e os significados múltiplos e, por vezes, ambíguos que tal conceito arrola. Abordamos o quanto o modus vivendi que caracteriza a sociedade pós-moderna pode propiciar, ainda mais, a exacerbação de um sentimento de vazio e desesperança no homem contemporâneo, mediante a perda de suas referências e de todas as “garantias” dos esquemas explicativos (como a ciência e a religião), bem como mediante a fragilização de seus vínculos relacionais.
Que novas configurações de subjetividade foram formatadas pela nova ordem social em que vivemos não há como denegar. O sentimento de desamparo e o potencial de incerteza do sujeito acrescem bastante, delimitando a necessidade deste de inscrever-se num mundo que, ao mesmo tempo em que lhe abre muitas possibilidades, aponta-lhe muitas impossibilidades existenciais (Fensterseifer e Werlang, 2006). Nesse âmbito, a psicologia particularmente insurge como uma possibilidade de atender aos litígios da contemporaneidade, fornecendo um recinto para que o sujeito possa olhar para tudo isso e pensar em si, pautando sua existência em outros imperativos, que não os que estão em vigor. Entretanto, parece que também é marca registrada do homem pós-moderno, o aprisionamento na impossibilidade de parar para pensar, fazendo um movimento de voltar-se para dentro, talvez por temor de olhar para si e se abismar com o que se vai deparar.
Seria necessário pensar, a essa altura, o que é possível fazer (ou deixar de fazer) para que o autocentramento desmedido, a busca desenfreada pelo prazer e o narcisismo retomem seus lugares na ordem do dia, deixando de ser os protagonistas da cena pós-moderna, sem que, no entanto, receba-se prontamente o ferrete da utopia. Em torno desse questionamento, fazem-se imprescindíveis novos estudos, novas ações práticas e, por conseguinte, novas atitudes indagativas.
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Referências bibliográficas

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Sobre a identidade sexual: algumas reflexões/ponderações





Ao tentarmos versar algumas considerações relativas à identidade sexual, inapelavelmente, somos “coagidos” a ponderamos sobre aquilo que se configura, exata e especificamente, como identidade e sobre a sexualidade, propriamente. Apenas em tom de declaração, comungaremos, aqui, da ideia de que ambas estão superimplicadas e em mútua determinação.

A identidade, enquanto noção e sentimento de si, é uma noção dinâmica que sobrevive em cada um de nós. Em outras palavras, a identidade é um processo contínuo, nunca acabado. Consoante os movimentos da vida assumimos posições identitárias com maior ou menor mobilidade. Ademais, a identidade não é algo que encontremos, ou que tenhamos de uma vez e para sempre. Identidade é uma construção (e reconstrução), um movimento.

“A identidade não é algo que exista a priori e deva ser resgatado. Identidades são construídas em interações sociais, dependem da existência do outro, sendo passíveis de constantes reconstruções e transformações em novas interações. A identidade não está ligada a ser, mas a estar, ou, mais especificamente, a representar. Sendo a identidade uma construção social, e não um dado, herdado biologicamente, ela se dá no âmbito da representação: a identidade representa a forma como os indivíduos se enxergam e enxergam uns aos outros no mundo.” (HALL, 1992, p. 56)

É recente a centralidade que a questão da identidade adquiriu nas ciências sociais. A ideia de que a identidade é socialmente construída foi reconfigurada (não descartada). Nessa ótica, seguindo a argumentação de Hall (1992) pode-se dizer que as identidades não mais (unicamente) se referem a grupos fechados, ou apenas a identidades étnicas. Num mundo instável, numa sociedade de risco (Beck, 2003), numa modernidade líquida (Bauman, 2001) as identidades também se tornam instáveis. Deixam de ser determinadas por grupos específicos e também deixam de ser o foco de estabilidade do mundo social. As identidades tornam-se híbridas e deslocadas de um vínculo local. E isso significa também que são transformadas em uma tarefa individual, em um processo de construção incessante, e não mais de atribuição coletiva que implicava apenas certa conformação às normas sociais.

Por outro lado, outra discussão é acionada através do debate acerca das identidades, a saber, as fronteiras entre a psicologia e a sociologia. O deslocamento da identidade enquanto identificação cultural para construção individual opera um deslocamento nas fronteiras do que é objeto de uma ou outra ciência. Quando o self se torna objeto da sociologia, e quando o debate em torno do indivíduo se torna predominante, tornam-se bastante sutis e permeáveis as fronteiras entre essas duas tradições científicas.

Hall (1992) nos apresenta três concepções de identidade, que foram se modificando, ao longo da história, através das mais variadas transformações sofridas pelos indivíduos. São elas: o sujeito do iluminismo (totalmente centrado, unificado, racional, dotado de um núcleo interior, que permanecia essencialmente o mesmo ao longo da existência do indivíduo); o sujeito sociológico (tinha consciência de que este núcleo interior do sujeito era formado a partir da interação com a sociedade e a cultura); e o sujeito pós-moderno (sua identidade se fragmenta e ele está composto de várias identidades possíveis, assumidas em diferentes momentos e não unificadas ao redor de um “eu” coerente).

Seguindo a esteira da liquidez, da imprevisibilidade e da instabilidade que caracterizam o mundo pós-moderno, a identidade figura como algo também instável, mutável, encontra-se sempre incompleta e em permanente processo de ressignificação, de reelaboração, demonstrando-se, como mencionado, que hodiernamente somos possuidores de inúmeras identidades. Cogita-se que há lugar para distinguir na identidade seu caráter relativo, o caráter absoluto e a capacidade para tolerar flutuações identitárias. Na verdade, nossa identidade tem de ser sempre relativa, uma vez que a sua plasticidade é a melhor maneira de preservar o edifício identitário (Bauman, 2001).

Acompanhada de mitos, tabus, proibições, inverdades e preconceitos, a sexualidade, da qual passaremos a tratar agora, é uma temática passível de muitas discussões. A sexualidade é uma característica (condição) inerente ao ser humano, é tão humana quanto o é a linguagem e se-nos faz presente desde a vida intra-uterina até o final de sua existência, manifestando-se de formas diversas, como bem advertiu a teoria freudiana. Inúmeros fatores biológicos, sociais, políticos e psicológicos influem diretamente na formação e no direcionamento da nossa sexualidade.

Sexualidade é, portanto, um fenômeno composto por elementos de diversas esferas, do biológico ao sociopolítico, do genético ao psicológico. Lidando simultaneamente com tantas variáveis, a sexualidade humana é o resultado e, ao mesmo tempo, a conseqüência direta da personalidade e das relações interpessoais de cada indivíduo.
Um outro ponto de vista a que, apenas à guisa de citação, pretendemos fazer menção é o de Michel Foucault, que concebeu a sexualidade como uma construção social basicamente criada para submeter o corpo individual ao controle coletivo da sociedade. Segundo ele, o conceito de sexualidade não é uma categoria natural, mas uma construção social e como tal só pode existir no contexto social.

Feitas essas duas breves considerações, tentaremos entrelaçar (embora nunca estiveram, em si, “desentrelaçados”) conceitualmente esses dois “aspectos” humanos, a saber, a identidade e a sexualidade. Frente à diversidade de formas de expressão da sexualidade, hodiernamente perceptíveis, o questionamento de modelos fixos e inequívocos do que é ser masculino e do que é ser feminino é inevitável. Tal questionamento parece dar espaço para o reconhecimento de masculinidades e de feminilidades.

O sexo biológico, por assim dizer, não mais responde (sozinho) pela sexualidade do indivíduo. A construção dos gêneros se ancora nos sistemas particulares de valores culturais, a partir de um conjunto de práticas, formas simbólicas, representações, normas e valores sociais, que moldam o corpo humano e suas práticas em noções de masculinidade e feminilidade (Giddens, 1993). Assim como os gêneros se constituem nas relações sociais e culturais, as identidades de gênero também são atribuídas socialmente. Podemos considerar o fenômeno contemporâneo dos transformismos como questionador de uma concepção de gênero, percebendo seu desdobramento numa multiplicidade de identidades.

As identidades sexuais se constituem através das formas como os indivíduos vivem sua sexualidade, com parceiros/as do mesmo sexo, do sexo oposto, de ambos os sexos ou sem parceiros/as. Por outro lado, os sujeitos também se identificam, social e historicamente, como masculinos e femininos e assim constroem suas identidades de gênero. (Louro, 1997). Freud rende-se à constatação de que a identidade sexual é tudo menos um processo simples, e passa a admitir que a “explicação” da homosexualidade não é mais necessária do que a da heterosexualidade (Freud, 1996)
Idéias como as de Rousseau foram basilares para a construção de uma noção da mulher como frágil e submissa ao homem. Para o filósofo, ela não deveria ultrapassar os limites da mediocridade e sim servir e dar prazer ao homem (Rousseau, 2004). Esse ideal de submissão se justificava porque as mulheres deveriam ocupar o “lugar natural” de esposas que devem agradar. A natureza, sendo sábia, argumenta Rousseau, conferiu às mulheres menos força física, mas também maior habilidade em obedecer. “É da ordem da natureza que a mulher obedeça ao homem”. Numa linha tênue entre ser submissa e ao mesmo tempo exercer poder, Rousseau vai propor um modelo que ainda se pode encontrar em vigor:

“O domínio da mulher é um domínio de doçura, de habilidade e de complacência; suas ordens são carícias, suas ameaças são lágrimas. Ela deve reinar no lar como um ministro no Estado, fazendo com que lhe ordenem o que quer fazer. Nesse sentido, é comum que os melhores casamentos sejam aqueles em que a mulher tem maior autoridade; quando, porém, ela despreza a voz do chefe, quando quer usurpar seus direitos e mandar ela própria, de tal desgoverno resulta apenas miséria, escândalo e desonra”. (ROUSSEAU, 2004, p. 244)

Rousseau estava inscrito numa tradição que via as mulheres como “coléricas, vingativas, de vontade e memórias fracas, dissimuladas, vaidosas, de pouca inteligência, avarentas, invejosas, difamadoras, vorazes, inconstantes, mentirosas, beberronas, tagarelas, insaciáveis.” (Nunes, 2000, p. 24) A mulher, na perspectiva rousseauísta, que foi "feita especialmente para agradar ao homem", tem como características inerentes ao seu sexo, a passividade e fragilidade. Esse parêntese serve de efeito comparativo para que percebamos como os papéis sociais do gênero mudam.

Os movimentos emancipatórios feministas mudaram esse cenário, levando, como dito, a uma redistribuição de papéis em todas as estâncias da vida cotidiana e re-demarcando, assim, os papéis sociais de gênero. Aquilo que era típico de um dos gêneros passou a tipificar ambos. Nesse movimento, as identidades de gênero também mudam, embaralham-se. Se os papéis sociais atribuídos a cada gênero são inconstantes, portanto, incertos, não é difícil perceber que a identidade de gênero também é marcada pela inconstância, pela incerteza, pela liquidez, como aponta. Bauman (2001).

A identidade sexual não pode ser confundida com identidade de gênero. Esta é definida por papéis que a sociedade determina ou atribui a cada gênero e, nessa linha de pensamento, abrange todas as expressões do gênero, extrapola aquilo que especificamente reporta-se à preferência sexual. Em outras palavras, o indivíduo pode desempenhar todos os papéis delegados a um gênero e possuir desejos sexuais diversamente norteados.

A identidade sexual também é influenciada pelas categorias de sexualidade presentes na cultura da pessoa e pelas atitudes da pessoa para com aquelas que se ajusta a essas categorias. Tantas categorias culturais da sexualidade quanto às atitudes culturais em relação a elas variam muito entre as sociedades e dentro das sociedades no decorrer do tempo.

Uma série de interrogações feitas por Lago (1999) questiona a posição de alguém que não se enquadre no modelo de heterossexual, enquanto dissonante com a identidade de gênero que lhe foi atribuída socialmente, pelo motivo da escolha de seu objeto amoroso. Isso nos faz refletir o quanto pode ser confuso para um sujeito que não se identifica com a identidade sexual que lhe é cobrada e, por vezes, sente-se desautorizado a se representar como homem ou mulher. Nesse mote, as questões ligadas à sexualidade estão intrinsecamente contidas nas discussões sobre gênero e identidade e as diferentes “estruturas” (classe, raça, gênero, sexualidade, etc.) não podem ser tratadas como variáveis independentes, pois a opressão sofrida por cada uma está inscrita na outra.

Não há apenas uma forma de sexualidade, nem um único modelo identitário, há sexualidades e identidades. O conceito de sexualidades carrega a idéia da inclusão de diferenças e diferentes identidades. A riqueza humana reside nas diferenças e não na incessante luta para enquadrar diferenças em moldes pré-estabelecidos. Afinal, como adverte o adágio popular “o sexo entre as orelhas é mais importante que o sexo entre as pernas"




Referências bibliográficas

BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
BECK, U. Liberdade ou Capitalismo. São Paulo: Editora UNESP, 2003
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HALL, S. Identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu Silva, Guacira Lopes Louro. 2. ed. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 1992.
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ROUSSEAU, J. J. Emílio ou da educação. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Preconceito e indiferença: a invisibilidade social como geradora de violência urbana

Frankleudo Luan de Lima Silva

INTRODUÇÃO


A violência urbana se constitui como um dos principais problemas sociais da atualidade. No Brasil, principalmente nos grandes centros, a violência pode ser identificada como a maior preocupação assinalada pela sociedade e vem sendo alvo de numerosos debates no âmbito público e privado. É um tema que compreende fenômenos das esferas social, política e econômica, repercutindo diretamente na qualidade de vida da população. A violência urbana nos preocupa, sobretudo, pelo grau de desenvolvimento alcançado tanto em termos de freqüência quanto de intensidade.

Cotidianamente nos deparamos com notícias sobre atos violentos cometidos por pessoas das mais variadas faixas etárias, classes socioeconômicas e até mesmo entre familiares, embora tenhamos a tendência de atribuir os atos violentos apenas àqueles que se encontram em situações de risco, tais como jovens residentes em áreas urbanas em situação de pobreza.

A violência urbana, tida como uma das faces da violência, caracteriza-se como um fenômeno notavelmente social. Essa tipologia possui algumas características que a distingue de outros tipos de violência e se desencadeia em conseqüência das condições de convivência que a estância urbana possibilita.

Este estudo tem como objetivos traçar um recorte temático da violência urbana, investigando suas possíveis causações, sob a luz de ciências como a psicologia, sociologia e antropologia. A importância em estudar a violência se explica pelo fato de este ser um tema que oferece informações do modo de vida de determinado grupo social.

O presente ensaio está organizado da seguinte forma: na primeira parte da argumentação teórica exploramos a temática da violência urbana, abordando alguns conceitos e causas. Em seguida, trazemos uma discussão acerca da invisibilidade social como um dos fenômenos geradores da violência urbana. Nas considerações finais tentamos apontar, para a violência, possíveis formas de prevenção e de coibição.

MARCO TEÓRICO

Violência urbana: um fenômeno multideterminado

A temática da violência urbana enquanto fato jornalístico está sempre presente na grande imprensa. Também é certo que atualmente presenciamos discussões sobre violência urbana nas salas de aula, nos debates acadêmicos, nas instituições jurídicas, nas ruas e podemos verificar que o tema suscita debates calorosos. Falar em violência deixou de ser um ato circunstancial para se transformar numa forma cotidiana de ver e de viver no mundo de hoje. Nos últimos anos, a sociedade brasileira entrou para o grupo das sociedades mais violentas do mundo. Hoje, o país possui altíssimos índices de violência urbana, revelando, assim, um estado de anomia da sociedade onde o terror e a insegurança imperam.

A violência cotidiana cada vez mais assume um papel preponderante em todos os níveis da sociedade. Atualmente o tema da violência urbana vem sendo aceito como resultado de um processo que condiciona tanto a cultura como os valores sociais, econômicos e políticos, como declara Zaluar (2004). Nesse sentido, a violência pode ser apresentada como conseqüência de diferentes experiências sociais decorrentes da crise da modernidade que busca alternativas interpretativas para as descontinuidades da sociedade contemporânea. Para Bock et al (2007), a violência nas ruas é um problema que afeta, particularmente, os aglomerados urbanos maiores (embora esse fenômeno tenha se espalhado vorazmente para cidades menores). A rua deixou de ser o espaço social do encontro, da convivência, para se tornar, atemorizadamente, um campo de batalha, o espaço da insegurança, do medo e da violência. Sempre que saímos à rua, principalmente nas grandes cidades, carregamos conosco uma sensação de desconfiança, de que estamos sendo constantemente observados, caracterizando, assim, uma prática panóptica cotidiana.

Violência pode designar uma agressão física, um ofensa, um gesto que humilha, um olhar que desrespeita, um assassinato cometido com as próprias mãos, um modo hostil de contar uma história despretensiosa, a indiferença ante o sofrimento alheio, a negligência com os idosos, a decisão política que produz conseqüências sociais nefastas (Soares et al, 1996). Com isso, percebemos que atitudes violentas não são exclusividade do menino de rua que nos aborda no semáforo, do assaltante, do traficante ou do homicida. Estes geralmente, diga-se da passagem, também são vitimados pela indiferença e pelo desprezo dos quais a sociedade os impregna (Arendt, 1994).

Violência urbana é a expressão que designa o fenômeno social de comportamento deliberadamente transgressor e agressivo ocorrido em função do convívio urbano. Essa tipologia tem algumas características que a diferencia de outros tipos de violência e se desencadeia em conseqüência das condições de convivência que o recinto urbano oferece (Oliven, 1989). Sua manifestação mais evidente é o alto índice de criminalidade; e a mais constante é a infração dos códigos elementares de conduta civilizada.

Nas periferias das cidades nas quais a presença do Poder Público é fraca, o crime consegue instalar-se mais facilmente. São os chamados espaços segregados, áreas nas quais a infra-estrutura urbana de equipamentos e serviços é precária ou insuficiente, e há baixa oferta de postos de trabalho. Nesse contexto, sem inserção no mercado de trabalho, excluído e invisível socialmente, recebendo um estímulo potente e apelativo para o consumo, sem modelos referenciais próximos que se contraponham e concorram com o modelo que o crime organizado oferece (o apoio, o sentimento de pertencimento de grupo, o prestígio, o poder que uma arma representa) o jovem se torna mais vulnerável. Na sociedade do espetáculo, em que o consumo é endeusado, o crime é visto como forma de superação da exclusão social (Martins, 1997). Nessa perspectiva, violência não é ação, é, na verdade, reação. Em outras palavras, a violência não tem um caráter meramente destrutivo, ela funciona como um último recurso que tenta restabelecer o que é justo segundo a ótica do agressor.

A violência urbana se caracteriza pela multicausalidade. A disparidade econômica, traduzida na forte concentração de renda, cria um ambiente favorável ao surgimento da violência urbana e nesse âmbito, a falta de oportunidades, as portas sempre cerradas levam milhões de jovens aptos a ingressar no mercado laborativo a se tornarem “exército de reserva do narcotráfico”, como lembra Jaguaribe (1974). De fato, tal dessemelhança socioeconômica aparece funcionar como caldo de cultura para a disseminação da conduta delitiva. Também, não temos como desatrelarmos o fenômeno da violência urbana do crescente envolvimento da população com o consumo e comercialização das drogas (lícitas e ilícitas). O crescimento do tráfico de drogas, por si só, é também fator relevante no aumento de crimes violentos. As taxas de homicídio, por exemplo, são elevadas pelos “acertos de conta”, chacinas e outras disputas entre traficantes rivais. Assim, a inserção dos individuos na rede de atividades ilícitas, em especial o tráfico de drogas, é uma referência importante no estudo da violência urbana, em especial da criminalidade urbana (Souza, 1996).

Outro fator que infla o número de atos delitivos é a disseminação das armas de fogo, principalmente das armas leves. Discussões banais, como brigas familiares, de bar e de trânsito, terminam em assassinato porque há uma arma de fogo envolvida. No mundo do crime as armas são o poder, lembra Cianato (2000). O encarceramento em nosso país não tem se mostrado uma alternativa investida de sucesso. Enviados aos presídios, que o PCC chama de “faculdades”, muitos dos jovens viram reféns e posteriormente agentes do crime organizado. A apologia midiática à violência, a fragilização dos laços familiares, assim como a corrosão dos vínculos sociais, sintomas da crise que perpassa todas as instituições sociais são também citadas como geradoras da violência urbana.


Sobre a invisibilidade social

"Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz como são violentas as margens que o reprimem". (Bertolt Brecht)

A passagem da modernidade para a pós-modernidade gerou um novo modelo de sociedade. De uma sociedade vista por Foucault (1987) como “Disciplinar”, para um modelo de sociedade identificada por Deleuze (1992) como de “Controle”. Hodiernamente, encontramo-nos num momento de transição entre um modelo e outro. Estamos para sair de uma forma de encarceramento completo para uma espécie de controle aberto e contínuo.

A sociedade contemporânea foi descrita pelo francês Guy Debord (1997) como a sociedade do espetáculo na qual o lema: “Penso, logo existo” cede espaço para uma nova cartografia do funcionamento da vida, caracterizada por outro aforismo: “Sou visto, logo existo.” Diante dessa realidade é interessante compreendermos de que forma essa tão desejada e, até certo ponto, necessária visibilidade, bem como a invisibilidade social mantêm relações com o fenômeno da violência urbana. Este talvez seja um itinerário adequado para analisarmos tal fato.

Muitos atores sociais são constantemente vitimados pelas ações invisibilizadoras de nossa sociedade. O preconceito, o abandono, a repelência são formas por meio das quais a indiferença social se instala, criando indivíduos socialmente invisíveis. É no cotidiano que as atitudes discriminatórias geram a marginalização do outro, enquanto membro de um grupo diferente. A invisibilidade social é uma poderosa venda que usamos para não enxergarmos as misérias humanas escancaradas nas sarjetas da sociedade. É, fundamentalmente, um reflexo de um processo de estigmatização (Zaluar, Noronha e Albuquerque, 2009). Nesse sentido, a invisibilidade tem o “poder” de nos anular, seja através do isolamento e da solidão, seja por meio da incomunicabilidade e da desvalorização. Por não ser reconhecido ou minimamente notado, o menino de rua (típico indivíduo invisível), reage, ou absorvendo o estigma, aceitando a inferioridade que lhe é imputada, ou, conscientemente, não leva em consideração as agressões sofridas ou ainda se rebela através de atitudes violentas (Agüero, 1998).

Sandro Nascimento foi um desses garotos negros e pobres que transitam indigentes pelas cidades. São meninos socialmente invisíveis e o recurso que encontram para impor sua existência sociológica, para recuperar sua visibilidade, é o medo. A violência dos jovens, nesse caso, é o esforço desesperado de reconstrução do self, esmagado pela negação social mais dramática: aquela que superpõe à discriminação social o estigma da cor. A história de Sandro é narrada no filme brasileiro de 2008 Última Parada 174, do diretor Bruno Barreto. A narrativa ao mesmo tempo em que busca humanizar a figura de Sandro do Nascimento, desconstruindo a imagem de “demônio” que ficou cristalizada a partir do seqüestro por ele cometido (momento de clamor por visibilidade), o longa mostra também o processo de desumanização e estigmatização de um indivíduo pela miséria social. Sandro, longe de ser um caso isolado, só se faz perceptível aos olhos da sociedade quando ocorre uma tragédia.

Como esclarece Soares et al (1996), a estigmatização é uma produção social que se origina de atitudes impregnadas de pré-conceitos, “é como acusar alguém de existir, apenas por não se enquadrar na ‘normalidade’, isto é, por não fazer parte do grupo tido como dominante”, afirmam os autores (p.112). Atitudes estigmatizantes reforçam as diferenças, reafirmam estereótipos padronizadores de conceitos sobre um grupo e intensificam, assim, o comportamento discriminatório. Ainda segundo Soares et al (1996), ao projetarmos sobre um determinado indivíduo a figura de um sujeito nulificado e inferiorizado, tornamo-lo, de certo modo, invisível.

O fenômeno da invisibilidade social está dissolvido na sociedade, ligado diretamente as relações de poder. Todavia, autores como Batista (2003) e Castro (2005) a concebem como um mecanismo de defesa que penetra na subjetividade coletiva, em nível mais profundo do que a simples representação consciente, atuando, portanto, diretamente no inconsciente. Não se trata pura e simplesmente de uma insensibilidade diante do outro, mas de um bloqueio de percepção, uma anestesia de sensibilidade ao sofrimento alheio que serve para nos livrar do que é dolente. A invisibilidade, nesta concepção, procede como forma de amnésia seletiva que objetiva a conservação do equilíbrio psíquico frente à aflição do outro.

Contudo, convém lembrar que somos todos nós os produtores e os produtos dessa sociedade míope. Somos co-autores no silêncio e na naturalidade com que encaramos esse estado de coisas. Os atos de violência urbana se sucedem e já são cotidianos. O risco é que nos acostumemos a essa rotina de tragédias e naturalizemos o quadro caótico, absurdo, e brutal em que vivemos. É importante manter viva a perplexidade, pois ela é a matriz do pensamento, da reflexão, mas é preciso transcender essa sensação, readquirindo o senso de humanidade (se é que nós já o tivemos). Se mantivermos a indignação com os acontecimentos, nos impediremos de naturalizá-los, abriremos caminhos de contorno e encontraremos possibilidades de recuperação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante da banalização da violência, a sociedade sempre exige que o Estado se utilize da repressão como se fosse a melhor estratégia para o enfrentamento dos conflitos urbanos. Isso origina um emaranhado de normas penais visivelmente ineficazes, fruto de uma clara predileção vingativa.

Dessa forma, a criminalidade prosseguirá crescendo, pois está atrelada a uma estrutura social profundamente injusta e desigual. Pobreza não gera violência, mas desigualdade, desordem urbana e impunidade, sim. Caso não se atue nesse ponto, será inútil punir e continuará sendo equívoca a idéia de que se pode corrigir castigando.

Torna-se urgente, portanto, um aprimoramento da política de segurança pública, pois enquanto a sociedade não se conscientizar da importância da prevenção, será muito difícil implantar uma atuação correta em resposta à criminalidade. A descentralização do poder decisório do Estado por meio da participação direta dos cidadãos no planejamento da segurança urbana deve se constituir como um dos pilares dessa prevenção.

As estratégias de enfrentamento devem, por assim dizer, possuir diretrizes que oscilem entre a repressão e a prevenção. A prevenção pode ocorrer em diversos níveis: promovendo a integração social e igualdade entre os cidadãos; dificultando o acesso as armas, drogas e álcool; com foco em programas educacionais infantis e de jovens em situação de risco, com o apoio das instituições governamentais, de ONGs, do ciclo de justiça criminal (polícias, justiça, promotoria, sistema prisional, entre outros), da mídia e das entidades acadêmicas.

Referências

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Última parada 174. Direção: Bruno Barreto. Produção: Patrick Siaretta, Paulo Dantas, Bruno Barreto e Antoine de Clermont-Tonnerre. Roteiro: Bráulio Mantovani. Brasil: Paramount Pictures do Brasil, 2008. 1 DVD (110 min).

ZALUAR, A. Violência, cultura e poder. In: F.R. CECCHETO (org.), Vio­lência e estilos de masculinidade. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2004.

ZALUAR, A.; NORONHA, J. C.; ALBUQUERQUE, C. Violência: pobreza ou fraqueza institucional? Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 2009.

Império da cultura imagética e solidificação de valores estéticos: ensaio sobre o consumismo


Empire of the image culture and solidification of aesthetic values: essay on consumerism

Frankleudo luan de Lima Silva

Faculdade de Psicologia-UEPB

Resumo

Numa sociedade onde a cultura quantitativa e imagética predomina e os valores éticos perdem espaço para valores estéticos, o consumo não é realizado apenas para satisfazer necessidades, ditas de sobrevivência, mas é feito devido a todo um conjunto de valores de diversas naturezas a que é associado. O consumismo é estimulado pelos meios de comunicação de massa e de homogeneização de cultura, característica marcante da globalização. Este ensaio pretende esclarecer como aspectos ideológicos, ontológicos, axiológicos e psicossociais se relacionam com o fenômeno do consumismo.

Palavras-chave: Consumismo, cultura imagética, valores estéticos


Abstract


In a society where image culture and quantitative predominates and ethical values lost space to aesthetic values, consumption is not done just to satisfy needs survival, but it is done due to a set of values of various types that are associated. Consumerism is driven by means of mass communication and homogenization of culture, characteristic of globalization. This essay aims to clarify how aspects ideological, ontological, axiological and psychosocial relate to the phenomenon of consumerism.

Keywords: Consumerism, image culture, aesthetic values


INTRODUÇÃO


Vivemos de aparências e nos preocupamos com o ter em detrimento do ser. Esta construção axiomática bastante recorrente e emblemática de nossa cultura, lamentavelmente, reflete como a sociedade em que vivemos parece estar empenhada em adquirir propriedade, priorizando a obtenção de lucro; como nos deixamos levar pelo consumo dirigido; como a maioria das pessoas vê o modo TER de existência como o mais natural e até mesmo o único modo de vida aceitável. Bombardeados pelos apelos do consumo, somos consumidos pelos desejos de consumir.

O que nos impulsiona na direção do ter, do consumir, do poder? O patrimônio, que deveria ser complemento de felicidade, passou a ser um fim em si mesmo. Por quê? Em uma sociedade cada vez mais baseada em valores materiais, o homem continua cada vez mais atribulado, automatizado, flébil e infeliz. Consome vorazmente o que pode. Quando não pode, sente-se inferior, apoucado, sem valor. Psíquica e morbidamente obeso, tem uma fome que não consegue saciar, porque não procura o alimento adequado à sua verdadeira natureza. Seus referenciais são representados pelo que se pode obter com o modo de vida capitalista. Acumulando descomedidamente coisas, o ser humano passa a ser, ele também, coisa: de possuidor passa a possuído. Em tal condição, descarta e é descartado (Fromm, 1987).

Erich Fromm, um eminente psicanalista, sociólogo e filósofo alemão do século XX, aborda brilhantemente essa temática, apontando como uma das principais premissas para o fenômeno do consumismo desenfreado, o processo de alienação social. Segundo Fromm (1988), o indivíduo cultivou interiormente sentimentos de desamparo e solidão, pois perdeu o contato com sua dimensão mais humana, deixou de ampliar suas virtudes, e assim tornou-se incapaz de interagir com os mesmos aspectos essenciais das outras pessoas. É a este processo que ele chama de alienação social, oculta por trás das máscaras de cada um, mas mesmo assim capaz de exercer um impacto sobre a sua humanidade.

MARCO TEÓRICO

O consumismo é uma das características marcantes da sociedade e da própria condição de existência do homem moderno. Volta-se para a própria essência do capitalismo, ou seja, a venda de produtos e serviços com vistas à apropriação do lucro. Os processos que permeiam o consumismo exarcebado em nossa sociedade estabelecem relações com um mecanismo produtor e produzido pelo modo de TER de existência, qual seja: a ideologia. Como aponta Scitovsky (1986), consumismo é fundamentalmente uma ideologia. Na perspectiva de Chauí (1991), ideologia se configura como um mascaramento da realidade social que permite legitimar as condições sociais de exploração e de dominação, fazendo com que pareçam verdadeiras, naturais e justas. Nas palavras de Bock et al (2002) “a ideologia é um sistema de representações e crenças que encobrem a realidade, falseando-a e não permitindo que percebamos e questionemos as contradições de nossa sociedade” (p.249). Destarte, a ideologia consiste precisamente na transformação das idéias das classes dominantes em idéias dominantes para a sociedade como um todo.

O que torna a ideologia objetivamente possível é o processo de alienação, isto é, o fato de que, no plano da experiência vivida e imediata, as condições reais de existência social dos homens não lhes pareçam produzidas por ele, mas ao contrário, eles se percebem produzidos por tais condições e atribuem a origem e funcionamento da vida social a forças superiores, alheias às suas (deuses, Natureza, destino, etc.). O conjunto lógico e sistemático de idéias, valores e condutas que a ideologia prescreve aos membros de uma sociedade, o modo como estes devem pensar, o que devem valorizar e como devem valorizar, o que devem fazer e como devem fazer, reforçam e sustentam a dominação. A ideologia do consumo ou consumismo diz muito da nossa sociedade, porém de forma subjacente: ela não fala apenas da riqueza presente nos produtos e serviços consumidos, mas expõe as várias faces da dimensão afetiva, valorativa - seja do indivíduo, seja da sociedade – presentes no universo real e irreal do consumo, como esclarece Debord (1997).

Ocorre que a ideologia do consumo se vincula a interesses mercadológicos e o seu grande sucesso, bem como suas conseqüências, transcendem a questões de natureza puramente econômica. Dito em outras palavras, o consumo não se limita à mera satisfação de necessidades básicas de sobrevivência, pois está carregado de aspectos subjetivos e culturais. Nesse sentido, um importante itinerário para se pensar o consumismo é o da cultura através de massas. Tentando explicar a dinâmica da cultura industrial, enfatizando que esta se relaciona intrinsecamente ao consumismo, o teórico francês Edgard Morin explica que o sistema capitalista necessita não somente de um aparato infra-estrutural (produção, mão-de-obra, tecnologia, etc.), mas precisa de instrumentos que conquistem a dimensão subjetiva e valorativa com o intuito de convencer o sujeito a consumir produtos e serviços (Morin, 1967). Indústria cultural ou cultura industrial, portanto, diz respeito à criação industrializada, à padronização cultural voltada para o mercado de consumo (Adorno & Horkerheimer, 1985).

Desde a Revolução Industrial a produção e o consumo de mercadorias vêm se intensificando gradativamente, e acompanhando essa evolução o consumismo se tornou uma mentalidade que alimenta e estimula a ótica da produção e do lucro na ênfase dada às necessidades, mesmo sendo estas, por vezes, objetivamente inexistentes, como aponta Vicentino (1997). Segundo a lógica capitalista, a maioria dos bens de consumo é fabricada para não ter grande durabilidade, o efeito do consumo é evanescente, logo perde sua característica de satisfazer, exatamente para favorecer uma constante busca de compra, oferecida pela venda dos produtos, mantendo sempre vivas as leis de mercado feitas pela procura e pela oferta. E a propaganda estimula o consumo, criando necessidades e levando as pessoas a consumirem, alimentando a produção e o comércio.

O que parece estar acontecendo é que os comportamentos, as normas e o sentido global da vida individual e comunitária, não se inspiram em padrões éticos de valores, preferindo-se aluir ao sabor de critérios imediatistas, consumistas, hedonistas e pragmáticos. Num português mais direto, o desaparecimento das raízes morais parece fazer do prazer o critério fundamental das escolhas, privilegiando-se o que se pode ter agora, consumir vertiginosamente. Assim, a vida é inutilmente queimada no fogo da vaidade, da ganância, da futilidade, tornando-se insuportavelmente fugaz (Bauman, 2008).

A conseqüência do TER, em detrimento do SER, é o esvaziamento moral, afetivo e espiritual. Sentimos a frieza do outro, sua falta de calor, de respeito e, principalmente, de amor sem perceber que também somos condutores de frieza e de ausência de afeto. O homem destrói por ganância o meio em que vive. Predadores e cruéis, importamo-nos apenas com o lucro que poderemos auferir (Fromm, 1988). Os meios de propaganda, com apelos hipnotizantes cada vez maiores e mais fortes na direção do consumo, tornaram-se os reais condutores da existência do homem moderno. Ou seja, a orientação no sentido do TER é característica da sociedade industrial ocidental, na qual a avidez por dinheiro, fama e poder tornou-se o tema dominante da vida. Com isso, a alternativa entre TER e SER parece não se mostrar apelativa numa sociedade onde a própria essência do SER parece residir, cada vez mais, no TER. O TER promete, assim, transformar o SER.

É mais fácil definirmos o modo TER de existência que o modo SER de viver no mundo, justamente porque TER é de fato o que mais vivenciamos em nossa cultura. TER refere-se a posses, coisas, e coisas são determináveis e definíveis. Na estrutura do TER, a palavra inerte domina. Nesse modo de existência não há relação viva entre mim e o que eu tenho; vivo na condição de objeto, manipulado, dirigido e tiranizado por estímulos deslumbrantes da ideologia consumista; meu sentido de identidade repousa em meu possuir. A coisa e eu convertemo-nos em coisas, e eu a tenho porque tenho o poder de fazê-la minha. A relação, portanto, é de inércia, passividade e não de vida (Slater, 2002).

Nas palavras de Fromm (1988), o modo SER “(...) refere-se à experiência, e a experiência humana, em princípio não é definível” (p.96). Paira então a seguinte interrogação: em que consiste o modo SER? “SER” exige renúncia da egocentridade, é uma fuga à prisão do imediatismo, da superficialidade, do próprio eu isolado, do consumo excessivo, como alerta Helsinger (2004). O modo SER tem como requisitos a independência, a liberdade (portanto, responsabilidade) e a presença de razão crítica. Sua característica fundamental vislumbra um ser ativo, no sentido de atividade íntima, de emprego criativo das faculdades e talentos humanos.

Na sociedade de consumo, aparentemente, há pouco espaço para valores espirituais. A modernidade, com seu “progresso”, levou a humanidade a uma situação de falta de referências, a um vazio moral, embora se tenha materialmente quase tudo (Rojas, 1996). A cultura do TER se solidifica diante de tanta prosperidade tecnológica, enfraquecendo a compreensão do SER. Mediante essa supervalorização da posse, dos bens materiais em vez do humano instaura-se a crise. Uma crise ontológica, mística e existencial, explica Längle (1992). O homem está desnorteado em meio a tanta superficialidade. A cultura do prazer imediato e da satisfação dos desejos a qualquer custo, como algo que pode ser encontrado na próxima prateleira, leva a intensificação dessa crise. O cultivo da desenfreada busca pelo prazer e da supervalorização da estética se torna o novo código de comportamento. É isso que para Rojas (1996) “(...) significa a morte dos ideais, a ausência de sentido e a busca de uma série de sensações cada vez mais novas e excitantes” (p.14).

No afã de alcançar “satisfação” e de suprir suas necessidades auto-afirmativas, o homem cai no consumismo, que lhe é apresentado como meio. O consumismo, como alerta Frankl (1991), apresenta-se como a receita pós-moderna de liberdade. A falsa liberdade (liberdade que ao sujeito escraviza e manipula) confunde-se com permissividade. Tudo é permitido, desde que o fim seja alcançado – o prazer a todo custo. Como o prazer é algo que não pode ser por completo satisfeito, uma vez que seu fator gerador é o desejo e o homem é um ser de estrutura desejante, há sempre uma nova busca, um novo “ideal” a ser perseguido. O homem é levado a crer que possuindo, tendo, adquirindo, ele encontra a liberdade e, sendo livre, encontra o prazer.

Outro aspecto que deve ser tratado para se compreender os fatores que envolvem o consumismo irrefreável remete-se à reflexão a respeito do anseio, presente em nossa sociedade, pelo culto à imagem, ao espetáculo, ao business. Impressionar torna-se a palavra de ordem na sociedade cuja produção da cultura mercantiliza a própria violência, a própria tragédia, a banalização da sexualidade. Na indústria cultural hegemônica, o ético se transforma no estético que, por sua vez, condiciona a própria existência do indivíduo. Importa mais do que tudo a imagem, a aparência, a exibição (Costa, 2004). Fica-se a impressão de que a ostentação do consumo vale mais que o próprio consumo. A “sociedade do espetáculo”, termo pensado pelo escritor francês Guy Debord, resume brilhantemente essa veleidade presente na cultura consumista de presenciar o espetáculo, como se fosse uma tentativa de compensar a vida pobre (em diversos âmbitos) e fragmentária, contemplando e consumindo passivamente as imagens de tudo o que falta ao homem em sua existência concreta. A sociedade moderna passa a ser compreendida, então, como o reino do espetáculo, da representação fetichizada do mundo dos objetos e das mercadorias. O espetáculo, assim, consagra toda a glória ao reino da aparência (Debord, 1997).

A idéia de sociedade do espetáculo casa muito bem com a idéia do filósofo francês Jean Baudrillard, ao afirmar que consumimos signos, e não coisas. Esses signos nos são inculcados por meio do arsenal midiático, e interagem com nossas estruturas subjetivas; por isso o consumo, mesmo que não possa ser efetivamente exercido, está presente nas crenças e desejos existentes no indivíduo. Os signos de poder, status, fama, sucesso são consumidos avidamente pelas pessoas porque há uma cultura do "chegar lá". Interessante que o "crescimento" das pessoas é "medido", reconhecido e valorizado pela quantidade de bens que elas acumularam, e não quanto ao crescimento como seres politizados, pensantes, altruístas, humanos (Baudrillard,1991).

O consumo compulsivo e o ato toxicômano, que figuram como sintomas da ideologia consumista, podem evidenciar um comprometimento psíquico de maior relevância. O consumo compelido é encarado como algo que despersonaliza, como tentativa de preencher o vácuo existencial causado, como exorcização das angústias. A compulsividade mascara desordens emocionais e afetivas (Helsinger, 2004). É uma espécie de camuflagem sentimental, pois reflete um abismo de carências que se tenta preencher por meio de um regime compensatório de satisfação superficial de conflitos interiores. E ainda, o consumo muitas vezes é estimulado pela concessão de oportunidade de se pertencer a um determinado grupo social que proporcione claros sinais de identidade, sobretudo para adolescentes, explica Severiano (2001). O consumo nessa ocasião cria signos de visibilidade e é um dos demarcadores da identidade grupal.

Considerações finais

A sociedade hodierna tem preferido a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser. Tal ideologia desvirtua o pensamento do indivíduo que enleia as noções de TER e SER. Percebemos com isso, uma vulgarização da experiência humana que vem se abalizar, dentre outras formas de manifestação, pelo comportamento consumista irracional e descomedido. Ocorre que tanto o modo ter como o modo ser de existência são potencialidades da natureza humana; que nosso impulso biológico à sobrevivência tende a estimular o modo ter, mas que egoísmo e indolência não são as únicas propensões dos seres humanos.

Não menos em importância é este outro fator: as relações das pessoas para com a natureza tornaram-se profundamente hostis. Sendo nós “caprichos da natureza”, que pelas próprias condições de nossa existência estamos no seio da natureza e pelo dom da nossa razão transcendemo-la. Temos tentado solucionar nosso problema existencial desistindo da visão messiânica da harmonia entre humanidade e natureza pela conquista da natureza, mediante transformação dela a nosso critério, até que a conquista se tenha tornado cada vez mais equivalente à destruição. Nosso espírito de conquista e hostilidade cegou-nos para o fato de que os recursos naturais têm seus limites e pode de fato esgotar-se (Sirgy, 1982).

Frente a uma humanidade que se encontra sem fundamentos, sem direção, moralmente estéril e fadada ao malogro, urgem mudanças na maneira como vivenciamos a alteridade; nos valores que devem compor nossa existência, repudiando aqueles que nos são vendidos; no modo como lapidamos nossa consciência ecológica e política. Diante disso, Fromm (1987) aponta para a necessidade de uma nova e profunda revolução socioeconômica e psicológica capaz de fazer desviar a rota catastrófica que temos delineado, e impedir, assim, a ruína social, psicológica e ecológica que se afigura no horizonte.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BOCK, A.M.B.; FURTADO, O.; TEIXEIRA, M.L.T. (2002) Psicologias: uma introdução ao estudo da Psicologia. 13ed reform. e ampl. Saraiva. São Paulo

CHAUI, M. (1991). O que é ideologia? 34ed. Brasiliense. São Paulo

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HELSINGER, L. A. (2004). O tempo do Ser-Vil: O mercado perverso da servidão. Imago. Rio de Janeiro

LÄNGLE, A. (1992). Viver com sentido: análise existencial aplicada: guia para viver. Vozes. Petrópolis

MORIN, E. (1967). Cultura de Massas no Século XX. Forense. Rio de Janeiro

ROJAS, E. (1996). O Homem Moderno: a luta contra o vazio. Mandarim. São Paulo

SEVERIANO, M. F. V. (2001). Narcisismo e publicidade: uma análise psicossocial dos ideais do consumo na contemporaneidade. Annablume. São Paulo

SLATER, D. (2002). Cultura do consumo e modernidade. Nobel. São Paulo

Scitovsky, M. (1986), T. Frustraciones de la riqueza. La satisfacción humana y la insatisfacción del consumidor. FCE, México.

Sirgy, M. J. (1982). Self-Concept in Consumer Behavior: A Critical Review. Journal of Consumer Research. v.9, n.3. Disponível em: http://www.journals.uchicago.edu. Acesso em 06 de maio de 2009.

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