sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Império da cultura imagética e solidificação de valores estéticos: ensaio sobre o consumismo


Empire of the image culture and solidification of aesthetic values: essay on consumerism

Frankleudo luan de Lima Silva

Faculdade de Psicologia-UEPB

Resumo

Numa sociedade onde a cultura quantitativa e imagética predomina e os valores éticos perdem espaço para valores estéticos, o consumo não é realizado apenas para satisfazer necessidades, ditas de sobrevivência, mas é feito devido a todo um conjunto de valores de diversas naturezas a que é associado. O consumismo é estimulado pelos meios de comunicação de massa e de homogeneização de cultura, característica marcante da globalização. Este ensaio pretende esclarecer como aspectos ideológicos, ontológicos, axiológicos e psicossociais se relacionam com o fenômeno do consumismo.

Palavras-chave: Consumismo, cultura imagética, valores estéticos


Abstract


In a society where image culture and quantitative predominates and ethical values lost space to aesthetic values, consumption is not done just to satisfy needs survival, but it is done due to a set of values of various types that are associated. Consumerism is driven by means of mass communication and homogenization of culture, characteristic of globalization. This essay aims to clarify how aspects ideological, ontological, axiological and psychosocial relate to the phenomenon of consumerism.

Keywords: Consumerism, image culture, aesthetic values


INTRODUÇÃO


Vivemos de aparências e nos preocupamos com o ter em detrimento do ser. Esta construção axiomática bastante recorrente e emblemática de nossa cultura, lamentavelmente, reflete como a sociedade em que vivemos parece estar empenhada em adquirir propriedade, priorizando a obtenção de lucro; como nos deixamos levar pelo consumo dirigido; como a maioria das pessoas vê o modo TER de existência como o mais natural e até mesmo o único modo de vida aceitável. Bombardeados pelos apelos do consumo, somos consumidos pelos desejos de consumir.

O que nos impulsiona na direção do ter, do consumir, do poder? O patrimônio, que deveria ser complemento de felicidade, passou a ser um fim em si mesmo. Por quê? Em uma sociedade cada vez mais baseada em valores materiais, o homem continua cada vez mais atribulado, automatizado, flébil e infeliz. Consome vorazmente o que pode. Quando não pode, sente-se inferior, apoucado, sem valor. Psíquica e morbidamente obeso, tem uma fome que não consegue saciar, porque não procura o alimento adequado à sua verdadeira natureza. Seus referenciais são representados pelo que se pode obter com o modo de vida capitalista. Acumulando descomedidamente coisas, o ser humano passa a ser, ele também, coisa: de possuidor passa a possuído. Em tal condição, descarta e é descartado (Fromm, 1987).

Erich Fromm, um eminente psicanalista, sociólogo e filósofo alemão do século XX, aborda brilhantemente essa temática, apontando como uma das principais premissas para o fenômeno do consumismo desenfreado, o processo de alienação social. Segundo Fromm (1988), o indivíduo cultivou interiormente sentimentos de desamparo e solidão, pois perdeu o contato com sua dimensão mais humana, deixou de ampliar suas virtudes, e assim tornou-se incapaz de interagir com os mesmos aspectos essenciais das outras pessoas. É a este processo que ele chama de alienação social, oculta por trás das máscaras de cada um, mas mesmo assim capaz de exercer um impacto sobre a sua humanidade.

MARCO TEÓRICO

O consumismo é uma das características marcantes da sociedade e da própria condição de existência do homem moderno. Volta-se para a própria essência do capitalismo, ou seja, a venda de produtos e serviços com vistas à apropriação do lucro. Os processos que permeiam o consumismo exarcebado em nossa sociedade estabelecem relações com um mecanismo produtor e produzido pelo modo de TER de existência, qual seja: a ideologia. Como aponta Scitovsky (1986), consumismo é fundamentalmente uma ideologia. Na perspectiva de Chauí (1991), ideologia se configura como um mascaramento da realidade social que permite legitimar as condições sociais de exploração e de dominação, fazendo com que pareçam verdadeiras, naturais e justas. Nas palavras de Bock et al (2002) “a ideologia é um sistema de representações e crenças que encobrem a realidade, falseando-a e não permitindo que percebamos e questionemos as contradições de nossa sociedade” (p.249). Destarte, a ideologia consiste precisamente na transformação das idéias das classes dominantes em idéias dominantes para a sociedade como um todo.

O que torna a ideologia objetivamente possível é o processo de alienação, isto é, o fato de que, no plano da experiência vivida e imediata, as condições reais de existência social dos homens não lhes pareçam produzidas por ele, mas ao contrário, eles se percebem produzidos por tais condições e atribuem a origem e funcionamento da vida social a forças superiores, alheias às suas (deuses, Natureza, destino, etc.). O conjunto lógico e sistemático de idéias, valores e condutas que a ideologia prescreve aos membros de uma sociedade, o modo como estes devem pensar, o que devem valorizar e como devem valorizar, o que devem fazer e como devem fazer, reforçam e sustentam a dominação. A ideologia do consumo ou consumismo diz muito da nossa sociedade, porém de forma subjacente: ela não fala apenas da riqueza presente nos produtos e serviços consumidos, mas expõe as várias faces da dimensão afetiva, valorativa - seja do indivíduo, seja da sociedade – presentes no universo real e irreal do consumo, como esclarece Debord (1997).

Ocorre que a ideologia do consumo se vincula a interesses mercadológicos e o seu grande sucesso, bem como suas conseqüências, transcendem a questões de natureza puramente econômica. Dito em outras palavras, o consumo não se limita à mera satisfação de necessidades básicas de sobrevivência, pois está carregado de aspectos subjetivos e culturais. Nesse sentido, um importante itinerário para se pensar o consumismo é o da cultura através de massas. Tentando explicar a dinâmica da cultura industrial, enfatizando que esta se relaciona intrinsecamente ao consumismo, o teórico francês Edgard Morin explica que o sistema capitalista necessita não somente de um aparato infra-estrutural (produção, mão-de-obra, tecnologia, etc.), mas precisa de instrumentos que conquistem a dimensão subjetiva e valorativa com o intuito de convencer o sujeito a consumir produtos e serviços (Morin, 1967). Indústria cultural ou cultura industrial, portanto, diz respeito à criação industrializada, à padronização cultural voltada para o mercado de consumo (Adorno & Horkerheimer, 1985).

Desde a Revolução Industrial a produção e o consumo de mercadorias vêm se intensificando gradativamente, e acompanhando essa evolução o consumismo se tornou uma mentalidade que alimenta e estimula a ótica da produção e do lucro na ênfase dada às necessidades, mesmo sendo estas, por vezes, objetivamente inexistentes, como aponta Vicentino (1997). Segundo a lógica capitalista, a maioria dos bens de consumo é fabricada para não ter grande durabilidade, o efeito do consumo é evanescente, logo perde sua característica de satisfazer, exatamente para favorecer uma constante busca de compra, oferecida pela venda dos produtos, mantendo sempre vivas as leis de mercado feitas pela procura e pela oferta. E a propaganda estimula o consumo, criando necessidades e levando as pessoas a consumirem, alimentando a produção e o comércio.

O que parece estar acontecendo é que os comportamentos, as normas e o sentido global da vida individual e comunitária, não se inspiram em padrões éticos de valores, preferindo-se aluir ao sabor de critérios imediatistas, consumistas, hedonistas e pragmáticos. Num português mais direto, o desaparecimento das raízes morais parece fazer do prazer o critério fundamental das escolhas, privilegiando-se o que se pode ter agora, consumir vertiginosamente. Assim, a vida é inutilmente queimada no fogo da vaidade, da ganância, da futilidade, tornando-se insuportavelmente fugaz (Bauman, 2008).

A conseqüência do TER, em detrimento do SER, é o esvaziamento moral, afetivo e espiritual. Sentimos a frieza do outro, sua falta de calor, de respeito e, principalmente, de amor sem perceber que também somos condutores de frieza e de ausência de afeto. O homem destrói por ganância o meio em que vive. Predadores e cruéis, importamo-nos apenas com o lucro que poderemos auferir (Fromm, 1988). Os meios de propaganda, com apelos hipnotizantes cada vez maiores e mais fortes na direção do consumo, tornaram-se os reais condutores da existência do homem moderno. Ou seja, a orientação no sentido do TER é característica da sociedade industrial ocidental, na qual a avidez por dinheiro, fama e poder tornou-se o tema dominante da vida. Com isso, a alternativa entre TER e SER parece não se mostrar apelativa numa sociedade onde a própria essência do SER parece residir, cada vez mais, no TER. O TER promete, assim, transformar o SER.

É mais fácil definirmos o modo TER de existência que o modo SER de viver no mundo, justamente porque TER é de fato o que mais vivenciamos em nossa cultura. TER refere-se a posses, coisas, e coisas são determináveis e definíveis. Na estrutura do TER, a palavra inerte domina. Nesse modo de existência não há relação viva entre mim e o que eu tenho; vivo na condição de objeto, manipulado, dirigido e tiranizado por estímulos deslumbrantes da ideologia consumista; meu sentido de identidade repousa em meu possuir. A coisa e eu convertemo-nos em coisas, e eu a tenho porque tenho o poder de fazê-la minha. A relação, portanto, é de inércia, passividade e não de vida (Slater, 2002).

Nas palavras de Fromm (1988), o modo SER “(...) refere-se à experiência, e a experiência humana, em princípio não é definível” (p.96). Paira então a seguinte interrogação: em que consiste o modo SER? “SER” exige renúncia da egocentridade, é uma fuga à prisão do imediatismo, da superficialidade, do próprio eu isolado, do consumo excessivo, como alerta Helsinger (2004). O modo SER tem como requisitos a independência, a liberdade (portanto, responsabilidade) e a presença de razão crítica. Sua característica fundamental vislumbra um ser ativo, no sentido de atividade íntima, de emprego criativo das faculdades e talentos humanos.

Na sociedade de consumo, aparentemente, há pouco espaço para valores espirituais. A modernidade, com seu “progresso”, levou a humanidade a uma situação de falta de referências, a um vazio moral, embora se tenha materialmente quase tudo (Rojas, 1996). A cultura do TER se solidifica diante de tanta prosperidade tecnológica, enfraquecendo a compreensão do SER. Mediante essa supervalorização da posse, dos bens materiais em vez do humano instaura-se a crise. Uma crise ontológica, mística e existencial, explica Längle (1992). O homem está desnorteado em meio a tanta superficialidade. A cultura do prazer imediato e da satisfação dos desejos a qualquer custo, como algo que pode ser encontrado na próxima prateleira, leva a intensificação dessa crise. O cultivo da desenfreada busca pelo prazer e da supervalorização da estética se torna o novo código de comportamento. É isso que para Rojas (1996) “(...) significa a morte dos ideais, a ausência de sentido e a busca de uma série de sensações cada vez mais novas e excitantes” (p.14).

No afã de alcançar “satisfação” e de suprir suas necessidades auto-afirmativas, o homem cai no consumismo, que lhe é apresentado como meio. O consumismo, como alerta Frankl (1991), apresenta-se como a receita pós-moderna de liberdade. A falsa liberdade (liberdade que ao sujeito escraviza e manipula) confunde-se com permissividade. Tudo é permitido, desde que o fim seja alcançado – o prazer a todo custo. Como o prazer é algo que não pode ser por completo satisfeito, uma vez que seu fator gerador é o desejo e o homem é um ser de estrutura desejante, há sempre uma nova busca, um novo “ideal” a ser perseguido. O homem é levado a crer que possuindo, tendo, adquirindo, ele encontra a liberdade e, sendo livre, encontra o prazer.

Outro aspecto que deve ser tratado para se compreender os fatores que envolvem o consumismo irrefreável remete-se à reflexão a respeito do anseio, presente em nossa sociedade, pelo culto à imagem, ao espetáculo, ao business. Impressionar torna-se a palavra de ordem na sociedade cuja produção da cultura mercantiliza a própria violência, a própria tragédia, a banalização da sexualidade. Na indústria cultural hegemônica, o ético se transforma no estético que, por sua vez, condiciona a própria existência do indivíduo. Importa mais do que tudo a imagem, a aparência, a exibição (Costa, 2004). Fica-se a impressão de que a ostentação do consumo vale mais que o próprio consumo. A “sociedade do espetáculo”, termo pensado pelo escritor francês Guy Debord, resume brilhantemente essa veleidade presente na cultura consumista de presenciar o espetáculo, como se fosse uma tentativa de compensar a vida pobre (em diversos âmbitos) e fragmentária, contemplando e consumindo passivamente as imagens de tudo o que falta ao homem em sua existência concreta. A sociedade moderna passa a ser compreendida, então, como o reino do espetáculo, da representação fetichizada do mundo dos objetos e das mercadorias. O espetáculo, assim, consagra toda a glória ao reino da aparência (Debord, 1997).

A idéia de sociedade do espetáculo casa muito bem com a idéia do filósofo francês Jean Baudrillard, ao afirmar que consumimos signos, e não coisas. Esses signos nos são inculcados por meio do arsenal midiático, e interagem com nossas estruturas subjetivas; por isso o consumo, mesmo que não possa ser efetivamente exercido, está presente nas crenças e desejos existentes no indivíduo. Os signos de poder, status, fama, sucesso são consumidos avidamente pelas pessoas porque há uma cultura do "chegar lá". Interessante que o "crescimento" das pessoas é "medido", reconhecido e valorizado pela quantidade de bens que elas acumularam, e não quanto ao crescimento como seres politizados, pensantes, altruístas, humanos (Baudrillard,1991).

O consumo compulsivo e o ato toxicômano, que figuram como sintomas da ideologia consumista, podem evidenciar um comprometimento psíquico de maior relevância. O consumo compelido é encarado como algo que despersonaliza, como tentativa de preencher o vácuo existencial causado, como exorcização das angústias. A compulsividade mascara desordens emocionais e afetivas (Helsinger, 2004). É uma espécie de camuflagem sentimental, pois reflete um abismo de carências que se tenta preencher por meio de um regime compensatório de satisfação superficial de conflitos interiores. E ainda, o consumo muitas vezes é estimulado pela concessão de oportunidade de se pertencer a um determinado grupo social que proporcione claros sinais de identidade, sobretudo para adolescentes, explica Severiano (2001). O consumo nessa ocasião cria signos de visibilidade e é um dos demarcadores da identidade grupal.

Considerações finais

A sociedade hodierna tem preferido a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser. Tal ideologia desvirtua o pensamento do indivíduo que enleia as noções de TER e SER. Percebemos com isso, uma vulgarização da experiência humana que vem se abalizar, dentre outras formas de manifestação, pelo comportamento consumista irracional e descomedido. Ocorre que tanto o modo ter como o modo ser de existência são potencialidades da natureza humana; que nosso impulso biológico à sobrevivência tende a estimular o modo ter, mas que egoísmo e indolência não são as únicas propensões dos seres humanos.

Não menos em importância é este outro fator: as relações das pessoas para com a natureza tornaram-se profundamente hostis. Sendo nós “caprichos da natureza”, que pelas próprias condições de nossa existência estamos no seio da natureza e pelo dom da nossa razão transcendemo-la. Temos tentado solucionar nosso problema existencial desistindo da visão messiânica da harmonia entre humanidade e natureza pela conquista da natureza, mediante transformação dela a nosso critério, até que a conquista se tenha tornado cada vez mais equivalente à destruição. Nosso espírito de conquista e hostilidade cegou-nos para o fato de que os recursos naturais têm seus limites e pode de fato esgotar-se (Sirgy, 1982).

Frente a uma humanidade que se encontra sem fundamentos, sem direção, moralmente estéril e fadada ao malogro, urgem mudanças na maneira como vivenciamos a alteridade; nos valores que devem compor nossa existência, repudiando aqueles que nos são vendidos; no modo como lapidamos nossa consciência ecológica e política. Diante disso, Fromm (1987) aponta para a necessidade de uma nova e profunda revolução socioeconômica e psicológica capaz de fazer desviar a rota catastrófica que temos delineado, e impedir, assim, a ruína social, psicológica e ecológica que se afigura no horizonte.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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