quarta-feira, 18 de agosto de 2010

O Homem, a solidão e a cena pós-moderna

Muitos são os enfoques teóricos voltados à investigação do mote que circunscreve e motiva a experiência da solidão, seja esta apreendida como uma disposição ontológico-existencial, conforme declara algumas linhas da filosofia; seja compreendida do ponto de vista sociológico, que a considera fruto da produção social de um homem “egocentrado”, individualista e narcisista; seja ainda resultado da exclusão do indivíduo da sociedade convencional, por inadaptação ou pela recusa em aceitar determinados parâmetros adotados socialmente.
Numa primeira sondagem, a idéia de solidão remete-nos a situações de desamparo ou de abandono real e/ou simbólico; a uma sensação de carência absoluta. Para Tamayo e Pinheiro (1984), a solidão se caracteriza pela insuficiência de interação e comunicação emocional e pela falta de aproximação afetiva advinda da superficialidade das relações. Ao ponderarmos sobre o assunto, deparamo-nos, pois, com uma série de indagações, quais sejam: a solidão se constitui, por excelência, como estado pernicioso e degradante ou é um pressuposto essencial para o processo de autoconhecimento? Tem suas origens no mais íntimo do ser humano ou é tão-somente um sintoma cultural? A pós-modernidade tem aguçado o encapsulamento do homem em si mesmo, demarcando uma nova cartografia do funcionamento da vida?
O ponto de partida aqui adotado para se discutir essa temática segue a pensamento nietzschiano. A experiência da solidão em Nietzsche assume a perspectiva da criação, da coragem necessária ao homem reinventar-se a cada momento no dinâmico jogo existencial. Com isso, Nietzsche muda de órbita todo aquele sentido “danoso” que o homem moderno atribuíra à solidão. Para o filósofo alemão, a solidão nada tem a ver com a presença ou ausência de pessoas, mas é, por fundamento, o elemento constitucional do viver, na medida em que possibilita ao homem o contato íntimo consigo mesmo e assim descobrir uma vontade de potência que lhe permita uma relação mais legítima com a vida (Nietzsche, 2007; 2008).
Portanto, a solidão para Nietzsche é inerente à própria constituição do fenômeno da vida. Não é algo que esteja sob a tutela de nosso querer.
Todo processo de auto-superação, de tornar-se si mesmo, implica no pressuposto essencial da solidão como condição para o seu exercício. Conforme assegura a filosofia nietzschiana, há milênios o homem tem construído sua vida sob a ordem do gregário; este homem reconhece o que é bom para si a partir da legitimação do que é bom para a maioria (Nietzsche, 2000). O próprio rebanho trata de penitenciar aquele que se desgarra. Nietzsche reconhece, pois, na experiência da solidão um contraposto a essa ideologia. É necessário ser forte para olhar para si próprio pleiteando superar-se. Perante a difícil tarefa desse homem que se depara com uma cacofonia de vozes, contraditórias e conflitivas, a superação se deflagra apenas atingindo-se o estado de super-homem, um novo ser que, trazendo as novas tábuas, contempla a transmutação dos valores e o despertar para uma nova moralidade (Nietzsche, 2008). Esse além-do-homem se caracteriza por seu assentamento absoluto, pela confiança em sua intuição, pelo seu caráter inquebrantável, por uma solidão ativa, corajosa. A capacidade de estar só denota, em instância culminante, a expressão do amadurecimento de si, finaliza Nietzsche (2007).
Lançando mão da perspectiva existencialista, Martin Heidegger, filósofo do século XX, aponta a solidão como uma condição original do ser-no-mundo, o qual tem que reafirmar e edificar-se a si mesmo cotidianamente durante sua existência. Em Ser e Tempo, Heidegger declara que a solidão é para o ser humano uma marca ou uma determinação ontológica. Cada um de nós é só no mundo. É como se o ato de nascer fosse uma espécie de lançamento da pessoa à sua própria sorte. Podemos nos amoldar a isso ou não, alega o filósofo. Contudo, diferenciamo-nos uns dos outros pelo modo como lidamos com a solidão e com o sentimento de liberdade ou de abandono que dela dimana, dependendo da maneira como interpretamos a origem de nossa existência. A partir daí podemos estabelecer dois estilos de vida diferentes: livre, autêntico e autodeterminado ou dependente, inautêntico e subordinado aos outros (Heidegger, 1993).
Apesar de o homem se fazer no e a partir do mundo, a sua condição de solidão reside no fato de que quando ele tem que efetivar-se como ser-no-mundo, lançado à cotidianidade, não pode contar com o mundo, mas apenas consigo, já que somente por si mesmo pode realizar o seu ser. Desse modo, a solidão singulariza o homem. (Heidegger, 1999). Podemos escolher estarmos com pessoas, mas ninguém nascerá, adoecerá, viverá ou morrerá em nosso lugar. Nesse sentido, o Outro é necessário para viver “com” e não “por” nós, isto é, não podemos fazer dele o personagem principal de nossa história e nos colocarmos como coadjuvantes e secundários. Sobre esse aspecto, Feijó (2000) afirma que a solidão, enquanto condição de abertura para o mundo é uma contingência da qual não se pode escapar tampouco compartilhar.
Como lembra Harvey (2004), os efeitos dessa disposição ontológica da solidão que tipifica o ser humano, na contemporaneidade tornam-se mais notáveis. A pós-modernidade marcada por grandes avanços científicos e tecnológicos e pela expansão dos meios de comunicação tem gerado, paradoxalmente, uma crescente sensação de solidão. Na atualidade a experiência da solidão adquire novos contornos e definições (Harvey, 2004). Antes, porém, de investigarmos tais conjeturas, um questionamento se faz cogente, a saber: o que caracteriza a pós-modernidade?
Pode-se dizer que estamos chegando ao encerramento de uma época com o surgimento concomitante de outra, caracterizada diversamente por vários autores: pós-modernidade, pós-modernismo (Lyotard, 2008), sociedade pós-industrial (Giddens, 1991), modernidade reflexiva (Giddens, Beck, Lash, 1997), modernidade tardia (Giddens, 2002), hipermodernidade (Lipovetsky, 2004).
A era pós-moderna clarificou o fato de que o mundo é gerido pela incerteza, e não mais pela certeza e pela existência de verdades únicas e congeladas, conforme prometia a ciência, e fez com que o homem tomasse consciência disso. Assim, parece possível dizer, segundo o sociólogo polonês Bauman (1999), que o desconforto causado pela certeza de que não há saídas nem soluções para a incerteza que pauta e ordena a vida é a fonte de mal-estares. A grande incerteza frente às coisas, a falta de garantias, marca registrada da pós-modernidade, advêm da superação do estatuto da ciência como algo onipotente, onipresente e onisciente. Neste sentido, a pós-modernidade evidencia o fato de que a ciência, por tudo o que se sabe e o que se pode saber, é apenas uma versão dentre muitas.
Segundo Pondé (2001), a pós-modernidade é o despertar malfazejo de um sonho colorido, já que se revogaram as referências, as regras impostas pelas teorias. Não há nenhuma cartilha a ser seguida. Por este motivo, alguns teóricos preferem chamá-la de contra-modernidade, já que se tem precisamente o avesso do que era antes. Tudo o que a modernidade havia edificado fora por água abaixo, transformado em líquido, uma modernidade líquida, como Bauman (1999; 1997; 2004) exemplifica, parodiando a apotegma marxista de que “tudo que é sólido desmancha no ar”, a modernidade se desfez não no ar, mas como líquido, sem forma, se espalhando, se esvaindo.
Uma das cicatrizes emocionais deixadas pela pós-modernidade foi o medo do vazio, representado pela ausência daquele padrão inequívoco, obrigatório e universal. Deste modo, o pesadelo do homem contemporâneo é, segundo os teóricos da pós-modernidade, ficar sozinho, alienado, à deriva, sem raízes (Pavlosk, 2005). Para Ruggero (2004), a solidão é, na atualidade, considerada um das mais graves contingências que desafiam o homem. Souza (2000) também destaca que a solidão demarca a vida do homem pós-moderno. A ampliação técnico-científica, com suas formidáveis potencialidades de humanização e de socialização, contrapõe-se à crescente solidão e ao individualismo narcisista suscitado nas relações sociais (Jorge, 1998; Moreira, 2003).
O que parece de mais emblemático e contundente em relação a este momento é o impacto que suas características têm causado nos sujeitos e em seus modos de viver. Para Bauman (1999), a solidão passou de um sentimento esporádico para uma condição padrão à medida que a rejeição das pluralidades e diferenças se intensificou. Bauman (2004) descreve muito bem o sentimento de não pertencença, fruto das novas cartografias da pós-modernidade, quando refere que ninguém mais considera o outro seu afim, e que hoje, a grande incerteza não diz respeito a qual grupo eu pertenço, e sim à dúvida de realmente pertencer a algum. Trata-se da “era do vazio” (Lipovetsky, 1989). E na tentativa de fugir da solidão, o homem perde a oportunidade de usá-la como recurso poderoso, capaz de fazê-lo entrar em contato consigo mesmo para, a partir de então, amadurecer e melhorar significativamente seus relacionamentos. A esse respeito, May (2002) nos diz que o homem, ao fugir da solidão perde, assim, a única coisa que o ajudaria positivamente a vencer a solidão a longo prazo, isto é, o desenvolvimento de seus recursos interiores, da força e do senso de direção, para usá-los como base de um relacionamento significativo com outros seres humanos. Trata-se, nesse caso, de assumir a solidão ontológica inerente ao Ser. Nas palavras de Lipovetsky (1989):

“(...) quanto mais a cidade desenvolve possibilidades de encontro, mais sós se sentem os indivíduos; mais as relações se tornam emancipadas das velhas sujeições, mais rara é a possibilidade de encontrar uma relação intensa. Em toda parte encontramos a solidão, o vazio, a dificuldade de sentir”(p. 77).

Atrapalhadamente, maneiras de não sucumbir ao sentimento de vazio e desamparo são freneticamente buscadas, no afã de efetivamente encontrar o que todos falam que a pós-modernidade veio trazer: o prazer sem limite, a estetização, os espetáculos, enfim, a felicidade irrestrita. O problema foi que a corrida atrás deste sonho pós-moderno produziu alguns “rejeitos”: aqueles que fracassaram e não encontraram o prazer, o cenário belo, uma vida brilhante e espetacular. Na atualidade, o autocentramento do sujeito atingiu limiares impensáveis, apresentando-se pela exagerada estetização da existência, onde a exaltação do próprio eu é o que mais importa. Nesse contexto, se o contemporâneo é marcado pelo predomínio do imperativo do prazer, o consumismo funciona como uma resposta social ao mal-estar próprio dos dias atuais, e assim como as toxicomanias, serve para silenciar a dor de se descobrir sem referências (Lima Silva, 2009).

A ambivalência dos vínculos afetivos

Várias análises e elucubrações descrevem o mundo contemporâneo como uma era marcada por um alentado individualismo em nosso convívio social, predominando um enfraquecimento na negociação de interesses comuns (Gomes & Silva Junior, 2007). Autores como Leite (2009) caracterizam a condição pós-moderna de existência como sendo abalizada pela desestruturação dos saberes, pelo anonimato do modo de vida atual e pelo esmorecimento da solidariedade inter-humana, produzindo, assim, laços sociais desarrumados.
A fragilidade dos vínculos humanos são enigmáticos, colidentes e inseguros na exata medida em que o homem contemporâneo está abandonado ao seu próprio aparelho de sentido, de modo que tal aparelho tem, ao mesmo tempo, grande facilidade de conceder e descartar sentido nas suas relações (Angerami-camon, 1990). Mesmo ávido por relacionar-se, o homem moderno não abre mão de seu alvedrio. Desta maneira, temos um novo arquétipo de relação: é a relação líquida, frouxa. Nas palavras de Bauman (2004), temos vivenciado "a misteriosa fragilidade dos vínculos humanos, o sentimento de insegurança que ela inspira e os desejos conflitantes (estimulados por tal sentimento) de apertar os laços e ao mesmo tempo mantê-los frouxos” (p. 8).
A vontade de estar confinante e ao mesmo tempo de não estabelecer relações duradouras é uma das principais marcas denunciadoras da ambivalência característica dos relacionamentos atuais. Tal ambivalência decorre, principalmente, da inconstância que impera na modernidade líquida, época de incertezas e inseguranças oriundas do risco que poderá acarretar um novo relacionamento diante do qual previsões e mecanismos de controle não mais surtem efeitos (Guedes, 2005). Bauman (1997) pontua que na líquida modernidade, os relacionamentos adquirem um perfil de acúmulo de experiência, todavia argumenta que essa perspectiva possui um lado perverso. A ânsia de que o relacionamento subsequente seja melhor que o anterior leva a uma inabalável não-realização do que se está vivendo no momento. A expectativa do próximo contato afetivo eclipsa a vivência do atual e as pessoas se tornam caçadores de amores cada vez mais perfeitos. No entanto, esse fastígio não se realiza, pois cada experiência é vista apenas como episódica e desencaixada diante da própria fragilidade dos relacionamentos. Neste sentido, Bauman (1997) acredita que essa busca pode levar, de forma contraditória, à incapacidade de amar.
A coeva fragmentação dos laços humanos produz, como supracitado, sentimento de precariedade que incute, concomitantemente, desejos e sentimentos ambíguos de estreitamento e frouxidão dos laços. E mesmo diante da insegurança nos relacionamentos e do contexto de individualização, há sim um esforço por relacionar-se, porém os relacionamentos a longo prazo que envolvem compromisso, parcerias e engajamento mútuo são encarados com desconfiança e ameaça . Ao que parece, o homem moderno busca o outro, mas mantém este outro a uma distância que permita o exercício da liberdade. O outro e o eu se relacionam, portanto, diante da dúvida. Nessa perspectiva, toda relação oscila “entre sonho e o pesadelo e não há como determinar quando um se transforma no outro”. (BAUMAN, 2004, p. 8).
A pós-moderna concepção do indivíduo desenraizado trouxe implicações para as idéias a respeito do amor hodiernamente experienciado. Devido ao uso descontextualizado que a indústria cultural faz do ideal romântico, este passou a ser visto como um produto para se consumir. O ideal de amor que é hodiernamente comercializado pelos meios de comunicação de massa entra em franco conflito com os significados originais que tal ideal possuía (Costa, 1998). Para este autor, consumimos atualmente um ideal amoroso pertencente à era dos sentimentos, porém vivemos na era das sensações, onde experimentar é a palavra de ordem. Sobre este aspecto, Pondé (2001) assinala o confronto de duas concepções de relação com o mundo: a utópica e a trágica. Esta última tende a afastar os fantasmas da perfeição (vida perfeita, sexo perfeito, amor perfeito, juventude eterna, felicidade plena) que a concepção utópica de mundo comporta.
Costa (1998) assegura, portanto, que “vivemos numa moral dupla: de um lado, a sedução das sensações; de outro a saudade dos sentimentos. Ambicionamos um amor eterno e com data de validade marcada: eis sua incontornável antinomia e sua imortal vicissitude” (p. 21). É nessa conjuntura ambivalente, densamente marcada pela individualização radical, hedonismo e cultura consumista, que os novos encadeamentos amorosos, ou pelo menos a vivência deles, constroem-se.
Nessa “lógica” contemporânea, o risco representado pela deliberação de ingressar principalmente em relações amorosas leva as pessoas a se ampararem em dois tipos de estratégias de proteção: a fixação e a flutuação (Bauman, 1997). A fixação pode ser entendida como uma busca de preservar o relacionamento, não obstante à impossibilidade de controlá-lo. Trata-se do

"esforço para emancipar o relacionamento de sentimentos erráticos e vacilantes, para assegurar que – aconteça o que acontecer com suas emoções – os parceiros continuem a beneficiar-se dos ‘dons do amor’: o interesse, o cuidado, a responsabilidade do outro parceiro. Um esforço para alcançar o estado em que se possa continuar recebendo sem dar mais, ou dando não mais do que o padrão estabelecido exige" (BAUMAN, 1997, p. 115).

Nesse sentido, o indivíduo tenta desviar a amargura e a temível possibilidade do fim do relacionamento. Investe-se na pretensão de preservar o objeto cuidado, ainda que exija abnegações ou mesmo implique rotinas. Investe-se, portanto, no exercício da tolerância para lidar com a diferença que a alteridade representa, diferença que deve ser aturada sob pena de resultar no término do relacionamento.
De acordo com Bauman (2004), os simpatizantes da flutuação, entretanto, não apresentam a mesma persistência. Não se dispõem a fazer muitas concessões. A flutuação assevera o direito dos consortes à renúncia unilateral. Na flutuação, a liberdade para se abdicar a relação a qualquer momento é latente; o amor assume, assim, a sua face episódica, ou seja, não se alicerça em compromissos morosos. Prima-se pela imediaticidade em detrimento do futuro; o rumo do relacionamento não tem tanta importância. Não há, por assim dizer, qualquer tipo de garantia.
A fixação e a flutuação intercedem, cada uma a seu modo, a sutil demarcação entre segurança e dependência (como um tipo de possessão/escravidão), por um lado, e liberdade e insegurança, por outro. Esses extremos, em torno dos quais podem ser alocados os relacionamentos, são responsáveis pela ambivalência que tipifica os afetos (BAUMAN, 2004).

Breves considerações finais

As reflexões aqui apresentadas objetivaram trazer para o foco de investigação o conceito de solidão e os significados múltiplos e, por vezes, ambíguos que tal conceito arrola. Abordamos o quanto o modus vivendi que caracteriza a sociedade pós-moderna pode propiciar, ainda mais, a exacerbação de um sentimento de vazio e desesperança no homem contemporâneo, mediante a perda de suas referências e de todas as “garantias” dos esquemas explicativos (como a ciência e a religião), bem como mediante a fragilização de seus vínculos relacionais.
Que novas configurações de subjetividade foram formatadas pela nova ordem social em que vivemos não há como denegar. O sentimento de desamparo e o potencial de incerteza do sujeito acrescem bastante, delimitando a necessidade deste de inscrever-se num mundo que, ao mesmo tempo em que lhe abre muitas possibilidades, aponta-lhe muitas impossibilidades existenciais (Fensterseifer e Werlang, 2006). Nesse âmbito, a psicologia particularmente insurge como uma possibilidade de atender aos litígios da contemporaneidade, fornecendo um recinto para que o sujeito possa olhar para tudo isso e pensar em si, pautando sua existência em outros imperativos, que não os que estão em vigor. Entretanto, parece que também é marca registrada do homem pós-moderno, o aprisionamento na impossibilidade de parar para pensar, fazendo um movimento de voltar-se para dentro, talvez por temor de olhar para si e se abismar com o que se vai deparar.
Seria necessário pensar, a essa altura, o que é possível fazer (ou deixar de fazer) para que o autocentramento desmedido, a busca desenfreada pelo prazer e o narcisismo retomem seus lugares na ordem do dia, deixando de ser os protagonistas da cena pós-moderna, sem que, no entanto, receba-se prontamente o ferrete da utopia. Em torno desse questionamento, fazem-se imprescindíveis novos estudos, novas ações práticas e, por conseguinte, novas atitudes indagativas.
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Referências bibliográficas

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Sobre a identidade sexual: algumas reflexões/ponderações





Ao tentarmos versar algumas considerações relativas à identidade sexual, inapelavelmente, somos “coagidos” a ponderamos sobre aquilo que se configura, exata e especificamente, como identidade e sobre a sexualidade, propriamente. Apenas em tom de declaração, comungaremos, aqui, da ideia de que ambas estão superimplicadas e em mútua determinação.

A identidade, enquanto noção e sentimento de si, é uma noção dinâmica que sobrevive em cada um de nós. Em outras palavras, a identidade é um processo contínuo, nunca acabado. Consoante os movimentos da vida assumimos posições identitárias com maior ou menor mobilidade. Ademais, a identidade não é algo que encontremos, ou que tenhamos de uma vez e para sempre. Identidade é uma construção (e reconstrução), um movimento.

“A identidade não é algo que exista a priori e deva ser resgatado. Identidades são construídas em interações sociais, dependem da existência do outro, sendo passíveis de constantes reconstruções e transformações em novas interações. A identidade não está ligada a ser, mas a estar, ou, mais especificamente, a representar. Sendo a identidade uma construção social, e não um dado, herdado biologicamente, ela se dá no âmbito da representação: a identidade representa a forma como os indivíduos se enxergam e enxergam uns aos outros no mundo.” (HALL, 1992, p. 56)

É recente a centralidade que a questão da identidade adquiriu nas ciências sociais. A ideia de que a identidade é socialmente construída foi reconfigurada (não descartada). Nessa ótica, seguindo a argumentação de Hall (1992) pode-se dizer que as identidades não mais (unicamente) se referem a grupos fechados, ou apenas a identidades étnicas. Num mundo instável, numa sociedade de risco (Beck, 2003), numa modernidade líquida (Bauman, 2001) as identidades também se tornam instáveis. Deixam de ser determinadas por grupos específicos e também deixam de ser o foco de estabilidade do mundo social. As identidades tornam-se híbridas e deslocadas de um vínculo local. E isso significa também que são transformadas em uma tarefa individual, em um processo de construção incessante, e não mais de atribuição coletiva que implicava apenas certa conformação às normas sociais.

Por outro lado, outra discussão é acionada através do debate acerca das identidades, a saber, as fronteiras entre a psicologia e a sociologia. O deslocamento da identidade enquanto identificação cultural para construção individual opera um deslocamento nas fronteiras do que é objeto de uma ou outra ciência. Quando o self se torna objeto da sociologia, e quando o debate em torno do indivíduo se torna predominante, tornam-se bastante sutis e permeáveis as fronteiras entre essas duas tradições científicas.

Hall (1992) nos apresenta três concepções de identidade, que foram se modificando, ao longo da história, através das mais variadas transformações sofridas pelos indivíduos. São elas: o sujeito do iluminismo (totalmente centrado, unificado, racional, dotado de um núcleo interior, que permanecia essencialmente o mesmo ao longo da existência do indivíduo); o sujeito sociológico (tinha consciência de que este núcleo interior do sujeito era formado a partir da interação com a sociedade e a cultura); e o sujeito pós-moderno (sua identidade se fragmenta e ele está composto de várias identidades possíveis, assumidas em diferentes momentos e não unificadas ao redor de um “eu” coerente).

Seguindo a esteira da liquidez, da imprevisibilidade e da instabilidade que caracterizam o mundo pós-moderno, a identidade figura como algo também instável, mutável, encontra-se sempre incompleta e em permanente processo de ressignificação, de reelaboração, demonstrando-se, como mencionado, que hodiernamente somos possuidores de inúmeras identidades. Cogita-se que há lugar para distinguir na identidade seu caráter relativo, o caráter absoluto e a capacidade para tolerar flutuações identitárias. Na verdade, nossa identidade tem de ser sempre relativa, uma vez que a sua plasticidade é a melhor maneira de preservar o edifício identitário (Bauman, 2001).

Acompanhada de mitos, tabus, proibições, inverdades e preconceitos, a sexualidade, da qual passaremos a tratar agora, é uma temática passível de muitas discussões. A sexualidade é uma característica (condição) inerente ao ser humano, é tão humana quanto o é a linguagem e se-nos faz presente desde a vida intra-uterina até o final de sua existência, manifestando-se de formas diversas, como bem advertiu a teoria freudiana. Inúmeros fatores biológicos, sociais, políticos e psicológicos influem diretamente na formação e no direcionamento da nossa sexualidade.

Sexualidade é, portanto, um fenômeno composto por elementos de diversas esferas, do biológico ao sociopolítico, do genético ao psicológico. Lidando simultaneamente com tantas variáveis, a sexualidade humana é o resultado e, ao mesmo tempo, a conseqüência direta da personalidade e das relações interpessoais de cada indivíduo.
Um outro ponto de vista a que, apenas à guisa de citação, pretendemos fazer menção é o de Michel Foucault, que concebeu a sexualidade como uma construção social basicamente criada para submeter o corpo individual ao controle coletivo da sociedade. Segundo ele, o conceito de sexualidade não é uma categoria natural, mas uma construção social e como tal só pode existir no contexto social.

Feitas essas duas breves considerações, tentaremos entrelaçar (embora nunca estiveram, em si, “desentrelaçados”) conceitualmente esses dois “aspectos” humanos, a saber, a identidade e a sexualidade. Frente à diversidade de formas de expressão da sexualidade, hodiernamente perceptíveis, o questionamento de modelos fixos e inequívocos do que é ser masculino e do que é ser feminino é inevitável. Tal questionamento parece dar espaço para o reconhecimento de masculinidades e de feminilidades.

O sexo biológico, por assim dizer, não mais responde (sozinho) pela sexualidade do indivíduo. A construção dos gêneros se ancora nos sistemas particulares de valores culturais, a partir de um conjunto de práticas, formas simbólicas, representações, normas e valores sociais, que moldam o corpo humano e suas práticas em noções de masculinidade e feminilidade (Giddens, 1993). Assim como os gêneros se constituem nas relações sociais e culturais, as identidades de gênero também são atribuídas socialmente. Podemos considerar o fenômeno contemporâneo dos transformismos como questionador de uma concepção de gênero, percebendo seu desdobramento numa multiplicidade de identidades.

As identidades sexuais se constituem através das formas como os indivíduos vivem sua sexualidade, com parceiros/as do mesmo sexo, do sexo oposto, de ambos os sexos ou sem parceiros/as. Por outro lado, os sujeitos também se identificam, social e historicamente, como masculinos e femininos e assim constroem suas identidades de gênero. (Louro, 1997). Freud rende-se à constatação de que a identidade sexual é tudo menos um processo simples, e passa a admitir que a “explicação” da homosexualidade não é mais necessária do que a da heterosexualidade (Freud, 1996)
Idéias como as de Rousseau foram basilares para a construção de uma noção da mulher como frágil e submissa ao homem. Para o filósofo, ela não deveria ultrapassar os limites da mediocridade e sim servir e dar prazer ao homem (Rousseau, 2004). Esse ideal de submissão se justificava porque as mulheres deveriam ocupar o “lugar natural” de esposas que devem agradar. A natureza, sendo sábia, argumenta Rousseau, conferiu às mulheres menos força física, mas também maior habilidade em obedecer. “É da ordem da natureza que a mulher obedeça ao homem”. Numa linha tênue entre ser submissa e ao mesmo tempo exercer poder, Rousseau vai propor um modelo que ainda se pode encontrar em vigor:

“O domínio da mulher é um domínio de doçura, de habilidade e de complacência; suas ordens são carícias, suas ameaças são lágrimas. Ela deve reinar no lar como um ministro no Estado, fazendo com que lhe ordenem o que quer fazer. Nesse sentido, é comum que os melhores casamentos sejam aqueles em que a mulher tem maior autoridade; quando, porém, ela despreza a voz do chefe, quando quer usurpar seus direitos e mandar ela própria, de tal desgoverno resulta apenas miséria, escândalo e desonra”. (ROUSSEAU, 2004, p. 244)

Rousseau estava inscrito numa tradição que via as mulheres como “coléricas, vingativas, de vontade e memórias fracas, dissimuladas, vaidosas, de pouca inteligência, avarentas, invejosas, difamadoras, vorazes, inconstantes, mentirosas, beberronas, tagarelas, insaciáveis.” (Nunes, 2000, p. 24) A mulher, na perspectiva rousseauísta, que foi "feita especialmente para agradar ao homem", tem como características inerentes ao seu sexo, a passividade e fragilidade. Esse parêntese serve de efeito comparativo para que percebamos como os papéis sociais do gênero mudam.

Os movimentos emancipatórios feministas mudaram esse cenário, levando, como dito, a uma redistribuição de papéis em todas as estâncias da vida cotidiana e re-demarcando, assim, os papéis sociais de gênero. Aquilo que era típico de um dos gêneros passou a tipificar ambos. Nesse movimento, as identidades de gênero também mudam, embaralham-se. Se os papéis sociais atribuídos a cada gênero são inconstantes, portanto, incertos, não é difícil perceber que a identidade de gênero também é marcada pela inconstância, pela incerteza, pela liquidez, como aponta. Bauman (2001).

A identidade sexual não pode ser confundida com identidade de gênero. Esta é definida por papéis que a sociedade determina ou atribui a cada gênero e, nessa linha de pensamento, abrange todas as expressões do gênero, extrapola aquilo que especificamente reporta-se à preferência sexual. Em outras palavras, o indivíduo pode desempenhar todos os papéis delegados a um gênero e possuir desejos sexuais diversamente norteados.

A identidade sexual também é influenciada pelas categorias de sexualidade presentes na cultura da pessoa e pelas atitudes da pessoa para com aquelas que se ajusta a essas categorias. Tantas categorias culturais da sexualidade quanto às atitudes culturais em relação a elas variam muito entre as sociedades e dentro das sociedades no decorrer do tempo.

Uma série de interrogações feitas por Lago (1999) questiona a posição de alguém que não se enquadre no modelo de heterossexual, enquanto dissonante com a identidade de gênero que lhe foi atribuída socialmente, pelo motivo da escolha de seu objeto amoroso. Isso nos faz refletir o quanto pode ser confuso para um sujeito que não se identifica com a identidade sexual que lhe é cobrada e, por vezes, sente-se desautorizado a se representar como homem ou mulher. Nesse mote, as questões ligadas à sexualidade estão intrinsecamente contidas nas discussões sobre gênero e identidade e as diferentes “estruturas” (classe, raça, gênero, sexualidade, etc.) não podem ser tratadas como variáveis independentes, pois a opressão sofrida por cada uma está inscrita na outra.

Não há apenas uma forma de sexualidade, nem um único modelo identitário, há sexualidades e identidades. O conceito de sexualidades carrega a idéia da inclusão de diferenças e diferentes identidades. A riqueza humana reside nas diferenças e não na incessante luta para enquadrar diferenças em moldes pré-estabelecidos. Afinal, como adverte o adágio popular “o sexo entre as orelhas é mais importante que o sexo entre as pernas"




Referências bibliográficas

BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
BECK, U. Liberdade ou Capitalismo. São Paulo: Editora UNESP, 2003
FREUD, S.(1905) Três Ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Obras psicológicas completas: Edição Standard Brasileira. Vol. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
GIDDENS, A.. A Transformação da intimidade: sexualidade, amor & erotismo nas sociedades modernas. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1993
HALL, S. Identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu Silva, Guacira Lopes Louro. 2. ed. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 1992.
LAGO, M. C. S. Identidade: a fragmentação do conceito. In: SILVA, Alcione Leite da, LAGO, Mara Coelho de Souza; RAMOS, Tânia Regina Oliveira (Org.) Falas de Gênero: Teoria, análises e leituras. Editora Mulheres: Santa Catarina, 1999.
LOURO, G. L. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.
NUNES, S. A. O corpo do diabo entre a cruz e a caldeirinha; um estudo sobre a mulher, o masoquismo e a feminilidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
ROUSSEAU, J. J. Emílio ou da educação. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

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